Jean Wyllys volta e pode ter cargo no governo
Foto: Carlos Vieira/CB/D.A Press
Jean Wyllys deixou o Brasil rumo à Europa, em janeiro de 2019, após receber ameaças de morte desde 2011. O ano anterior à partida havia sido de impacto para esquerda, com o assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSol do Rio de Janeiro; a prisão do agora presidente Luiz Inácio Lula da Silva; e, por fim, a vitória de Jair Bolsonaro nas urnas. Esses fatores levaram o então deputado recém-reeleito a optar por uma medida drástica: partir para o exílio.
Na semana passada, Wyllys retornou e viu o principal líder da extrema direita ser considerado inelegível por oito anos, pela Justiça Eleitoral. “Acho que o roteirista ainda teve um charme comigo, pois no dia que eu voltei do exílio, em 30 de junho, Bolsonaro se tornou inelegível”, brincou o ex-deputado, em entrevista ao Correio.
Wyllys trocou o PSol pelo PT, em um esforço para fortalecer Lula como o grande antagonista da extrema direita. Em Brasília, ele pode assumir um cargo no governo. E acredita que a luta contra o radicalismo precisa continuar. “A novela Bolsonaro ainda não se encerrou. Ela não vai, nem deve se encerrar em uma possível prisão de Bolsonaro”, afirma. “Há outras pessoas culpadas, têm os militares que planejaram o golpe de 8 de janeiro, que não podem ficar impunes. Acho que essa novela não tem que acabar e a gente não tem que esquecer. Um problema do Brasil é com esse esquecimento rápido. Nunca há esquecimento rápido. O Brasil nunca faz os lutos que deve fazer”, observa. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Olhando para 2018, como avalia sua saída do país?
No momento da saída, a extrema direita tinha vencido as eleições, no ano terrível que foi 2018. Foi o ano do assassinato de Marielle. Foi o ano que as ameaças contra mim se intensificaram de maneira muito forte e violenta. Fiz a campanha sob escolta 24 horas da Polícia Legislativa. Uma campanha em que não podia me deslocar direito pelo território do Rio de Janeiro. Portanto, fui prejudicado do ponto de vista eleitoral e no Brasil inteiro. Estava sofrendo uma campanha de difamação, orquestrada, pensada e perpetuada pela extrema direita que, inclusive, elegeu uma bancada em cima dessa difamação contra mim. Alguns desses não foram reeleitos em 2022, mas outros, sim. Então, naquele momento, não tinha outra solução.
O senhor procurou as autoridades?
Tinha feito 17 denúncias à Polícia Federal (PF), apresentei à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) as denúncias e as provas, que fez um pedido de medida cautelar ao governo, que era então o governo Temer, nascido do golpe de 2016 (impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff). O governo não concedeu a proteção que a comissão exigiu. Então, não me restava outro caminho a não ser o exílio, para seguir vivo e seguir trabalhando.
E agora, em 2023?
Agora, com minha ajuda inclusive, a gente elegeu um governo democrático, que não tem nenhum tipo de compromisso com o banditismo, que não atua por meio da mentira, da difamação, do assédio moral, do assédio jurídico, da violência política. Esse governo me dá condições de voltar ao meu país, rever minha mãe, meus irmãos, meus sobrinhos, meus amigos e de, alguma forma, contribuir para retomar essa democracia. A democracia está sendo retomada.
Não fosse o assassinato de Marielle, essas ameaças teriam sido levadas a sério?
A gente levou a sério desde o princípio. A primeira ameaça contra mim é de 2011. Coincide com o ataque da Escola Tasso da Silveira, em Realengo (RJ). As organizações que existiam na deep web — eram desses lugares que vinham as primeiras ameaças contra mim. Não é que não levei a sério, a gente tomou todas as medidas que podia tomar. Quando, em 2016, sofri um ataque nos arcos da Lapa, uma tentativa de linchamento, vi que a coisa estava seriíssima. A gente fez um pedido de escolta, mas foi negado naquele momento. A escolta só foi liberada quando Marielle morreu na verdade. O assassinato de Marielle foi uma surpresa para todos nós, porque ela não estava ameaçada, ao contrário de mim e de Marcelo Freixo. Ela não imaginava também que isso fosse acontecer com ela, ninguém imaginava. Para mim, a gravidade não surgiu aí — talvez para as pessoas, sim. Eu já sabia que era grave.
Por quê?
Em uma entrevista de 2013, fui perguntado quem eu silenciaria no Congresso, se pudesse. Acho que naquele momento era esperado que eu respondesse Marcos Feliciano, que era o presidente da Comissão de Direitos Humanos (na Câmara) e ele estava muito em evidência. Respondi que silenciaria Bolsonaro, porque ele é um entrave ao crescimento espiritual da humanidade. Em 2016, houve o episódio em que ele me insultou no dia da votação, na Câmara, no impeachment da Dilma — do golpe, na verdade. Me insultou e me desequilibrei, depois de muito tempo submetido à violência. Foi a primeira vez que tive uma reação mais firme e cuspi na cara dele.
O que aconteceu a partir daí?
A partir daí, intensifica-se de uma maneira que você não pode imaginar. Eu viro o alvo do ódio dessa gente que já estava muito bem organizada e muito bem financiada. A gente precisa descobrir, e é isso que acho que a investigação do STF está fazendo, sobretudo com os acontecimentos de 8 de janeiro, como essa rede criminosa foi financiada. Mas ela estava muito bem organizada e financiada em 2016. E só cresceu até 2018. E aí veio o assassinato de Marielle, como um produto também desse processo, de “fascistização”, dessa contaminação pelo ódio, desse modo de comunicação política da extrema direita que mobiliza os ódios, a utilização da minha imagem, da Márcia (Tiburi, filósofa), da Manuela d’Ávila (ex-deputada federal), da Maria do Rosário (deputada federal, PT-RS), nós quatro como as quatro figuras mais demonizadas, digamos assim, por essa comunicação. Eu fui reeleito. Além de destruir a minha imagem, eles tinham a pretensão de me deixar fora do Parlamento.
O extremismo é um movimento global organizado?
Eu integro o Consórcio da Internacional Progressista, criado em Madri, de monitoramento dos métodos da extrema direita em diferentes países. Há uma repetição de métodos, como aconteceu na Bolívia, na Hungria, na Turquia, como está acontecendo na Espanha agora com o (partido) Vox, o (partido) Chega, de Portugal, que era nada e agora está conseguindo espaço, com base na xenofobia. Minha tese de doutorado na Universidade de Barcelona é sobre desinformação, tomando a minha experiência, a minha etnografia involuntária — porque eu fiz uma etnografia involuntária do que é ser alvo do ódio. Esses acontecimentos estão todos ligados, levam ao 8 de janeiro. Todas as falas desde a deslegitimação do processo eleitoral, jogar uma sombra sobre esse processo para justificar um posterior golpe. O Brasil copiou o que aconteceu nos Estados Unidos ipsis litteris, com algumas figuras patéticas vestidas igualmente.
Há um fio condutor entre 2011 e 2018?
Esses fatos estão todos relacionados e diria que essa linha do tempo começa em 2011, que é quando chego ao Congresso, quando Dilma exerce seu primeiro mandato. E aí têm todas as implicações e reações da extrema direita a esse fato: uma mulher presidenta da República, uma mulher de esquerda, social democrata, e um homem gay assumido, orgulhoso da sua identidade, leva a agenda do movimento LGBTQIA+ e direitos humanos para o Congresso.
Houve uma força contrária a esses movimentos?
Há uma reação evidente dessa extrema direita desde então. Primeiro concentrada nas igrejas neopentecostais, que crescem tomando os corações e as mentes por meio da homofobia e da demonização das religiões de matriz africana, e vai até as organizações criminosas do Rio de Janeiro, as milícias. Essa é a linha do tempo, a esquerda é a grande vítima. A imprensa, que de certa forma negligenciou esse processo, torna-se vítima depois, lamentavelmente.
Qual foi a sua estratégia uma vez no exterior?
No exílio, em uma instância internacional, pude denunciar o quanto a democracia brasileira estava contaminada, estava sequestrada pela extrema direita, correndo riscos. Desde que saí, estive na sede da ONU; estive em diferentes instituições de ensino superior; em organizações não governamentais — sempre alertando para o fato de que a extrema direita tinha tomado a democracia brasileira e a democracia corria sério risco.
Esse trabalho foi solitário?
Não. Lutei bastante para que Lula se elegesse para que pudesse, enfim, voltar. Mas não só eu, todos os outros exilados, que são quase 30 pessoas, por causa de violência política e de ameaças de morte. Eu e a Márcia (Tiburi) somos os mais visíveis, mas não somos só nós. Estamos, inclusive, nesse apelo ao Ministério dos Direitos Humanos que trate dessa questão. O presidente Lula também disse que é uma questão que interessa a ele e que vai fazer o possível para que todos voltem.
É preciso criar condições democráticas?
Retomar a democracia implica poder voltar, trabalhar e tocar nossas vidas políticas, tocar nossos trabalhos artísticos, nossos trabalhos de intelectuais sem a gente sofrer o tipo de assédio e ameaça que a gente sofreu. (A antropóloga) Débora Diniz, por exemplo, pelo simples fato de ter defendido na Suprema Corte o direito das mulheres ao aborto, foi atacada e ameaçada de uma maneira brutal. Manuela d’Ávila teve que sair da vida pública. É muito grave que isso não seja levado a sério e ainda, por exemplo, não se leve em conta que as deputadas negras e agora os deputadas trans continuem sofrendo com esse assédio, sem que isso seja levado a sério institucionalmente.
A direita não oferece mais perigo?
O aprendizado é que nós vamos ter que conviver com uma porcentagem da população que é fascista. É algo que Umberto Eco diz em uma conferência que ele deu nos Estados Unidos, que virou um livro curto, mas muito interessante, chamado Fascismo eterno. Ele diz que há uma cota da população que está sempre disposta a se identificar com o fascismo, com essa estrutura de pensamento que não aceita alteridade, que busca inimigos em toda parte. Há uma parte da população que é paranoica e que é extrema direita. Então, o aprendizado vai ser esse: é preciso entender que sempre haverá esse percentual da população.
E qual é o desafio?
A questão é como a gente vai desenvolver políticas públicas no campo da cultura, da comunicação, da educação, da saúde… Como é que a gente vai construir políticas que sejam vacinas, que sejam, na verdade, políticas, que, usando uma metáfora, sejam uma campanha nacional de vacinação contra desinformação. Porque esse é o problema do século 21. A informação virou uma commodity. As big techs estão extraindo informações da gente para produzir desinformação, para intervir nos processos eleitorais e decisórios em toda parte do mundo.
O senhor encontrou-se com Lula antes de voltar ao Brasil?
Tive um encontro com Lula em Madri, quando ele esteve na Espanha para se encontrar com o presidente (Pedro Sánchez). Isso me deu mais segurança para vir. Ele disse: “Você tem que voltar para o seu país, porque a gente está reconstruindo a democracia e essa reconstrução precisa de vocꔑ. Eu disse “Eu vou, presidente”. E, claro, quando eu disse “eu vou”, considerei que o governo me daria condições para estar aqui atuando. Então, num primeiro momento, vou precisar, sim, de algum tipo de escolta. Já teve uma escolta me acompanhando quando cheguei, tenho que tomar alguns cuidados num primeiro momento. Mas vai chegar um momento que creio que a gente vai retomar a segurança e não vai precisar mais disso.
Pretende ficar em Brasília?
Neste primeiro momento, vou ficar aqui. Acho que é mais seguro assim. Tenho traumas do Rio de Janeiro. O ano de 2018 foi muito ruim para mim. Com todo respeito ao Rio, aos meus amigos que moram lá, que amo e vou visitar, não dou conta do que politicamente virou Rio.
O que será de Bolsonaro?
Creio muito em justiça cósmica — parece uma bobagem, mas eu acredito mesmo. Acho que quando a justiça dos homens não cumpre sua função, de alguma maneira as pessoas pagam para que o universo se reequilibre. A novela Bolsonaro ainda não se encerrou, não vai e nem deve se encerrar em uma possível prisão de Bolsonaro. Há outras pessoas culpadas: (o ex-ministro da Saúde e agora deputado, Eduardo) Pazuello, por exemplo, precisa responder pela sua gestão criminosa da covid-19, que resultou naquelas mortes todas; Ricardo Salles (ex-ministro do Meio Ambiente, também deputado) segue impune apesar de arrolado, denunciado por tráfico internacional de madeira. Tem os militares que planejaram o golpe de 8 de janeiro, que não podem ficar impunes. Acho que essa novela não tem que acabar e a gente não tem que esquecer.
A esquerda aprendeu alguma lição nos últimos anos?
Quero que tenha aprendido. A gente não pode se dar ao luxo de errar de novo, nem da mesma maneira, que é não escutando quem deve ser escutado. Essa falta de escuta tem a ver com o fato de que esses males — a homofobia, a transfobia e a misoginia — também estão na esquerda. A gente tem que aprender a ouvir essas vozes, sair dessa arrogância.