Ostracismo de Bolsonaro pacifica a política
Foto: Congresso Nacional/Divulgação
Nos meses de inverno, com o tempo seco, o ar fica, por vezes, quase irrespirável em cidades como Brasília e São Paulo. Foi assim, com especial frequência, nos últimos anos, em que o Brasil viveu imerso em um ambiente de crispação política máxima. Depois de longo período de disfuncionalidade, estamos voltando à tona. Foram necessários dois fatos de importância extraordinária, a merecer o adjetivo “histórico’’, em um espaço de sete dias. O primeiro, claro, foi o julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que tornou, no dia 30 de junho, o ex-presidente Jair Bolsonaro inelegível por oito anos, punindo-o por abuso de poder e ataques à democracia. O segundo, cujos efeitos se desdobrarão por muitos anos, é a aprovação, na madrugada do dia 7 de julho, de uma reforma tributária que levava décadas em discussão sem que se chegasse a um consenso. Já inelegível, Bolsonaro ainda tentou implodir o consenso, colhendo a primeira demonstração clara de seu esvaziamento político. Para influenciar, é preciso ter poder ou, ao menos, perspectiva de poder. Para liderar a oposição, é preciso trabalhar. Bolsonaro reconheceu, na reunião em que fracassou na tentativa de levar a bancada do PL a fechar questão contra a reforma, sua incapacidade de entender o texto da proposta de emenda constitucional (PEC) sem a ajuda de assessores. Vai faltar posto Ipiranga. Declaram apoio à reforma os ex-ministros de Bolsonaro com mais instinto de sobrevivência, como os senadores Ciro Nogueira (PP-PI) e Tereza Cristina (PP-MS), para nem falar do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos). Os brasileiros começam a enxergar um horizonte de longo prazo, a abstrair um pouco a agonia de cada dia. Aos poucos, dissolve-se nosso estado de “permanente aflição”, conforme definição do cientista político Sérgio Abranches. “Nos últimos quatro anos, a política, quando pôde ser feita, ocorreu num nível constante de agressividade. Isso não é bom. Na política, todo mundo sabe que uma hora o vento vira. E você tem que ter pontes do lado de lá”, analisa. O vento, que já tinha virado em outubro de 2022, soprou mais forte com as recentes decisões da Câmara e da Justiça Eleitoral. As negociações em torno da reforma levaram à mesa governadores, prefeitos, empresários, deputados das mais diversas correntes políticas e senadores que se anteciparam à discussão só agora aberta oficialmente na Casa. “Essa negociação simultânea é uma estratégia inteligente, de quem já entendeu como funciona o presidencialismo de coalizão”, diz Abranches, atribuindo méritos ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a quem considera habilidoso e efetivo nos bastidores. Estudioso do sistema que ele próprio batizou como presidencialismo de coalizão, Abranches acredita que a reforma tributária impulsionará novos avanços estruturais no Brasil. Na visão dele, mais do que pôr um mínimo de ordem e racionalidade no cipoal do sistema de impostos, a reforma abrirá o caminho para uma descentralização do poder a partir da política fiscal, com o governo federal transferindo competências para Estados e municípios. Caberia ao governo federal papel de coordenação e, ao Congresso, a discussão de políticas públicas e estratégias. “Isso melhora a qualidade da política”, assinala Abranches. Única mulher entre 15 deputados que integraram o grupo de trabalho (GT) da reforma, a deputada Tabata Amaral (PSB-SP), diz que foi “gratificante” participar do esforço de negociação que levou à aprovação. Ela entrou na edição revista e ampliada do GT inicial de 12 porque a bancada feminina, de 91 parlamentares, reivindicou presença e os homens reconheceram, após árduo convencimento, que havia “sub-representação”. “A política pode ser bem frustrante, ainda mais para quem é mulher e tem apreço por pautas grandes, estruturantes. A política às vezes se perde com mesquinharias”, diz Tabata, navegante de segundo mandato aos 29 anos. Formar consenso para aprovar tão ambiciosa mudança na Constituição exigiu que os políticos voltassem à atividade que os define: conversar, ouvir, ceder (ou resistir) até convencer. E, no caso do Brasil, negociar cargos e liberação de emendas. De repente, na noite da votação que já entrou para a história, os deputados se viram no plenário, seu habitat natural, e sabiam o que tinham que fazer. O ar havia voltado a ser respirável, apesar dos impropérios daqueles que tachavam a reforma tributária, endossada pela Fiesp, de “coisa de comunista”. No ambiente distendido, Tabata Amaral gravou e postou nas redes sociais um vídeo no qual não escondeu a emoção, a euforia que sentia. Mas não há espaço para ilusão quando, no mesmo aparelho de celular usado na gravação, ela continua a receber mensagens com ameaças de morte e palavrões. “A política ainda é um lugar extremamente machista. O clima pode estar um pouco menos violento, mas as mudanças não acontecem da noite para o dia. Nunca imaginei tanta difamação, tantos ataques, ter que andar com seguranças, carro blindado. Isso não estava na conta”, diz a deputada.