Família de torturador pode ter que indenizar jornalista
Foto: Agência Brasil – Comissão Nacional da Verdade
A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) retoma, nesta terça-feira (14/8), julgamento que pode restabelecer a condenação do ex-coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra como torturador durante a ditadura militar. Estão em análise a manutenção dos danos morais e a indenização à família do jornalista Luiz Eduardo Merlino, morto em 1971. O argumento é de que violações a direitos humanos, decorrentes de tortura, não prescrevem.
Ustra morreu em 15 de outubro de 2015. Em 2018, a 13ª Câmara Extraordinária de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) entendeu que o crime estava prescrito e anulou sentença condenatória da 20ª Vara Cível do Foro Central da Capital paulista. No entanto, a companheira e a irmã de Merlino pediram ao STJ para afastar a prescrição da decisão. No recurso, elas pedem a imposição de condenação ao espólio do ex-coronel a fim de indenizar a família do jornalista.
Luiz Eduardo Melino morreu nas dependências do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) em decorrência de espancamento e outros atos de tortura, em São Paulo. O local era comandado por Ustra.
Na última sessão, em 8 de agosto, quando o julgamento começou, o ministro Marco Buzzi, relator do caso, votou pela imprescribilidade de reparação civil por crimes de tortura na ditadura militar e a favor do pagamento de indenização à família do jornalista Luiz Eduardo Melino.
Em seu voto, Buzzi foi enfático: “Ditadura nunca mais!”. Ele votou para derrubar a decisão de São Paulo que considerou a prescrição do caso. Se o voto dele for o vencedor, o caso volta para a 13ª Câmara Extraordinária para que eles decidam novamente sobre a indenização.
O ministro deu provimento ao recurso, por considerar imprescritíveis as ações indenizatórias ajuizadas em razão de atos contra os direitos fundamentais praticados pelo Estado brasileiro e por seus agentes durante o período ditatorial.
O ministro Marco Buzzi destacou que a Primeira Seção do STJ editou a Súmula 647, segundo a qual são imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política praticados com violação de direitos fundamentais durante o regime militar.
Segundo o relator, o caráter imprescritível engloba não apenas as ações ajuizadas contra o Estado, mas também aquelas em que figura como réu o agente público envolvido nos atos de violência.
“Neste caso, trata-se de demanda ajuizada diretamente em face da pessoa natural a quem são imputados os atos de tortura. No entanto, discussões a respeito de eventual ilegitimidade passiva não foram ventiladas nas contrarrazões ao recurso especial, tampouco foram objeto de análise pelo tribunal a quo no acórdão recorrido, razão pela qual não houve o devido prequestionamento apto a permitir a análise da matéria no âmbito deste tribunal superior”, disse o ministro.
Para Buzzi, a qualificação dos atos supostamente praticados por Brilhante Ustra como ilícitos contra a humanidade impede que seja reconhecida a prescrição no caso, tendo em vista as “gravíssimas violações” que teriam sido cometidas por ele contra os direitos fundamentais do preso político.
Segundo o ministro, em episódios de ofensa frontal a direitos fundamentais – como no caso de tortura e morte durante a ditadura militar –, a pretensão de sua reparação deve sempre ser considerada imprescritível, em razão dos princípios fixados pela Constituição de 1988 e dos tratados internacionais de direitos humanos assinados pelo Brasil nas últimas décadas.
Buzzi lembrou que a Lei 6.683/1979 concedeu anistia criminal aos envolvidos em atos ilícitos na ditadura militar, mas não estendeu o benefício aos pedidos indenizatórios nem impediu que esses agentes fossem processados e responsabilizados “por toda a ferocidade das torturas cometidas, dos desaparecimentos de pessoas e das lesões gravíssimas praticadas”.
A ministra Isabel Gallotti abriu divergência. Ela votou por manter o acórdão do TJSP. Para ela, no direito privado, imprescritibilidade atenta contra a paz social. A ministra afirmou em seu voto que a Súmula 697 do STJ diz respeito a ações indenizatórias que discutem a responsabilidade objetiva do Estado, de forma que a imprescritibilidade, segundo ela, não atingiria processos que tenham como réu apenas o agente público.
Para Gallotti, embora a Lei de Anistia não tenha impedido a responsabilização civil de agentes públicos que atuaram na ditadura, a sua promulgação representou um pacto social de superação daquele momento político e de pacificação da sociedade brasileira.
“No âmbito do direito privado, em ação em que se deduz pedido condenatório, a pretensão de imprescritibilidade atenta contra a paz social, diversamente do que ocorre no âmbito do direito público”, afirmou Gallotti, ao lembrar que a ação foi ajuizada quase 40 anos depois da morte do jornalista.
A ação de indenização foi ajuizada pela companheira e pela irmã do jornalista em 2010, quando Ustra ainda era vivo. O ex-coronel tinha sido condenado ao pagamento de R$ 50 mil por danos morais a cada uma das autoras da ação: a esposa do jornalista assassinado, Ângela Mendes de Almeida, e a irmã Regina Maria Merlino Dias de Almeida.
Além disso, estava reconhecida a participação dele nas sessões de tortura que mataram Merlino. No entanto, o TJSP deu decisão diversa que agora terá o questionamento julgado.