Alemanha tem SIGILO TOTAL no seu ‘STF’
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva atraiu críticas na terça-feira (05/09) ao defender que as opiniões e votos individuais de cada membro do Supremo Tribunal Federal (STF) não sejam divulgados publicamente, e que seria preferível que somente a decisão final e o placar fossem tornados públicos.
Lula defendeu a ideia apontando que uma contenção na publicidade das posições individuais dos ministros ajudaria a melhorar o funcionamento do STF e a diminuir a animosidade de setores da sociedade contra alguns membros da Corte.
A declaração foi dada após o ministro Cristiano Zanin, indicado por Lula ao STF, ter entrado na mira de apoiadores do presidente que consideraram alguns de seus votos conservadores, como contra a descriminalização do porte de drogas e contra a equiparação da homofobia e da transfobia à injúria racial.
Embora a ideia de Lula tenha provocado críticas e tenha sido considerada inexequível por alguns juristas, que apontam que o princípio da publicidade na Constituição impediria uma mudança nesse sentido, a proposta não seria considerada exótica na Alemanha, onde vigora um modelo com algumas similaridades ao defendido por Lula.
“Se eu pudesse dar um conselho, é o seguinte: a sociedade não tem que saber como é que vota um ministro da Suprema Corte. Acho que o cara tem que votar e ninguém precisa saber… Votou, a maioria [ganha]. 5 a 4, 6 a 4, 3 a 2… Não precisa ninguém saber se foi o Uchôa que votou, se foi o Camilo que votou”, disse Lula.
Na quarta-feira, Rui Costa, ministro da Casa Civil, disse que concorda com Lula e citou especificamente o modelo da Alemanha. “Defendo a ideia do presidente Lula. Veja na Alemanha como funciona. Os ministros aqui muitas vezes não conseguem tranquilidade para votar, pois estão muito expostos à opinião pública por causa do excesso de exposição pública”, afirmou Costa.
Portas fechadas, sem televisão e juízes pouco conhecidos
Com um modelo que serviu para a instalação de outras cortes constitucionais no mundo, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (BVerfG, na sigla em alemão) é conhecido por uma atuação intervencionista em assuntos de sociedade, mas seus 16 membros dificilmente seriam reconhecidos pelo público nas ruas.
Metade dos 16 juízes e juízas são indicados pelo Bundestag, a câmara baixa do Parlamento alemão, e a outra metade pelo Bundesrat, a câmara alta do Parlamento, sendo eleitos para mandatos de doze anos, sem reeleição. A idade limite para um integrante se aposentar é aos 68 anos.
Os 16 integrantes atuam em dois senados de oito membros cada, que contam com respectivamente três câmaras. O Primeiro Senado julga reclamações constitucionais e de direitos fundamentais e o Segundo Senado, conflitos federais administrativos.
As discussões entre os juízes ocorrem a portas fechadas. Apenas sessões orais que eventualmente ocorrerem nos senados, nas quais as partes sustentam seus argumentos, são abertas ao público – mas elas não são televisionadas como no Brasil.
Só a leitura de decisões pelos senados que tiverem sido precedidas por sessões orais podem ser televisionadas. Decisões das câmaras não são divulgadas, e apenas remetidas por escrito às partes envolvidas. Não há nada parecido como no Brasil, com leitura de votos, discussões e deliberações sendo transmitidas pela TV.
Essa forma de divisão em senados e câmaras também privilegia a primazia de colegiados sobre decisões individuais. Dessa forma, o relator de um caso costuma adotar a posição que seja a média do tribunal logo no começo do julgamento. A redação final da decisão é elaborada em conjunto pelos membros do lado vencedor. Essa decisão é publicada e divulgada. Normalmente, o público só toma conhecimento na etapa final do julgamento.
Pelos procedimentos internos do tribunal, nem mesmo o placar de uma votação precisa se tornar público, mas o BVerfG, em contraste com outros tribunais da Alemanha, costuma divulgá-los. Porém, a forma como cada juiz votou não é tornada pública.
Há apenas uma exceção notável. Alguns juízes podem optar por solicitar a publicação e divulgação de um voto divergente – ou derrotado –, que é anexado junto à decisão final, com seu nome indicado.
Esse procedimento passou a fazer parte do tribunal em 1971, e constitui uma das poucas janelas para conseguir pistas sobre o comportamento individual de um juiz atrás das portas. Ainda assim, as opiniões e deliberações nas sessões fechadas são mantidas sob sigilo.
Distância do poder
Em 2016, em visita ao Brasil, a juíza Sibylle Kessal-Wuf, membro do BVerfG, destacou que a localização geográfica do tribunal alemão também era “saudável”. A corte não fica na capital, Berlim, mas na cidade de Karlsruhe, a 750 quilômetros de distância.
“Mesmo quando a capital era em Bonn, não ficávamos em Bonn. Somos o órgão constitucional que controla os outros órgãos constitucionais, então o órgão que controla fica longe dos órgãos controlados. A distância só faz bem”, disse a juíza à época.
Sigilo é adotado em outros países europeus
A Alemanha foi o primeiro país europeu a autorizar em lei a publicação de opiniões divergentes dos magistrados de sua corte constitucional. Tribunais semelhantes até hoje não permitem a prática, como as cortes de Áustria, Bélgica, França, Itália e Luxemburgo, segundo estudo da pesquisadora Katalin Kelemen publicado em 2013 na revista científica German Law Journal.
Portugal e Espanha, países com os quais o sistema de Justiça do Brasil tem mais proximidade, também permitem desde a década de 80 a publicação de votos divergentes de ministros.
Um dilema sobre publicar ou não votos divergentes de ministros é a necessidade de as cortes constitucionais terem, como corpo único, legitimidade e autoridade perante a nação versus o risco de que a divulgação de divergências possa expor fissuras e sujeitar os ministros individualmente à pressão de setores da população.
Por esse motivo, algumas cortes constitucionais no leste europeu criadas após a queda do regime socialista da antiga União Soviética optaram, no início, por proibir a publicação de votos divergentes, e passaram a admiti-los apenas mais recentemente, depois que a legitimidade da corte foi consolidada – como o caso da Lituânia e da Romênia. Na Letônia, até hoje as opiniões divergentes não são publicadas junto com as decisões, mas reunidas em uma coletânea publicada uma vez por ano.
De outro lado, a independência judicial, a liberdade de expressão e a transparência são valores citados por quem defende a publicação dos votos divergentes, para garantir aos magistrados que expressem suas opiniões minoritárias.
A França é um dos países que até hoje não permite a divulgação de votos divergentes dos ministros da sua corte constitucional. O tribunal tampouco publica as suas deliberações e os votos vencedores. “As decisões são curtas e secas, escritas quase como silogismos”, disse à DW Thomaz Pereira, professor de direito constitucional da FGV Direito Rio.
Para compensar as críticas à escassez de argumentos em suas decisões, a corte francesa passou a publicar comentários sobre suas decisões, que “servem a função de explicar o que os próprios votos não explicam”, disse Pereira.
Debate pertinente no Brasil?
Há muita pesquisa na academia brasileira sobre o processo de tomada de decisões do STF, e o sistema atual de deliberação “realmente traz diversos problemas para uma efetiva ‘deliberação’, no sentido de trocas de ideias, convencimento mútuo, voltar atrás em argumentos”, diz Pereira, ponderando que há sim casos de ministros que mudam de posição e ajustam seus votos de acordo com os argumentos apresentados por colegas.
No entanto, ele considera “pouco produtivo” investir energia agora em tentar alterar a publicidade dos votos de ministros, pois a ideia de deliberação pública na Corte “hoje faz parte do imaginário nacional da legitimidade do tribunal” e mudar o modelo poderia criar a percepção social “de conchavos a portas fechadas”.
“No caso do STF, sendo o tribunal hoje como é, a publicidade traz vantagens não desprezíveis. Se estivéssemos começando do zero, em outro sistema, poderia talvez ser o caso de imaginar uma fase de deliberação fechada prévia”, diz, citando o exemplo dos Estados Unidos.
Nas Suprema Corte americana, os ministros conversam a portas fechadas antes do julgamento, quando se chega a um placar inicial. Em seguida, escolhem-se ministros para escrever opiniões pela maioria ou pela minoria. Os votos então circulam por meses entre os ministros e são submetidos a ajustes, com o objetivo de contemplarem a maioria e a minoria – mas é mantida a possibilidade de apresentação de votos dissidentes.
Em alguns casos mais importantes, diz Pereira, a Suprema Corte americana anuncia suas decisões em bloco, na última semana do ano Judiciário, antes de os ministros entrarem em recesso.