Aras faz autopropaganda antes de vazar
Foto: Cristiano Mariz/O Globo
Augusto Aras, que encerra na próxima terça-feira seu segundo mandato na Procuradoria-Geral da República (PGR), mandou fazer uma série de vídeos e publicações de “prestação de contas” em que ele mesmo, assessores e algumas figuras um tanto aleatórias, como o ex-presidente José Sarney e Aldo Rebelo, falam em diálogo, eficiência, unidade e numa certa “arte do encontro institucional”. Entre os documentos, há até um relatório sobre “como o MPF se reinventou na pandemia de Covid-19”.
Na conta de Aras no ex-Twitter, a autopropaganda feita com os recursos públicos divide espaço com links para artigos que elogiam o PGR, além de posts atacando a imprensa, para ele contumaz divulgadora de fake news. Quem visita a timeline ora vê Aras se queixando de ter sido acusado de “destruir a Lava-Jato”, ora divulgando orgulhosamente um texto afirmando que ele “desestruturou as bases do lava-jatismo”.
Mesmo sem grandes chances de recondução, ele está firme em sua campanha virtual. Mas quem estiver procurando um balanço fiel de sua gestão terá de procurar fora do metaverso que ele criou.
Ao indicá-lo, em 2019, Jair Bolsonaro comparou o cargo à rainha do xadrez, “a peça mais poderosa, por poder se movimentar para todos os lados”. Para ele, o PGR só não era mais importante que o rei, “porque perdê-lo significa ser derrotado no jogo”.
A frase era um atestado do desprezo do então presidente pelo papel reservado na Constituição ao chefe do Ministério Público — ser uma espécie de “ombudsman” do Estado, com independência para defender os interesses da sociedade, a democracia e o equilíbrio entre os Poderes.
Bolsonaro, claro, não queria saber de nada disso, por isso também não escolheu seu indicado entre os mais votados na lista tríplice dos procuradores. O que ele queria evitar era ser “derrotado no jogo” — já que, por lei, é a PGR quem pode denunciar criminalmente o presidente da República.
Bolsonaro perdeu a eleição, mas Aras fez sua parte. Nos quatro anos de mandato, de acordo com levantamento feito pelo GLOBO, ele protegeu o presidente e seu clã em 95% dos processos no Supremo. Não viu crime na interferência de Bolsonaro sobre a Polícia Federal, também não se incomodou quando ele vazou e distorceu as informações de um inquérito sigiloso e inconcluso sobre um ataque hacker ao site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Na pandemia, recusou-se a recomendar a Bolsonaro que parasse de propagar mentiras e desinformação sobre o coronavírus. Não quis multá-lo por não usar máscara e promover aglomerações e o autorizou a intervir no distanciamento social de estados e municípios.
Contra a lei que garante autonomia aos procuradores, trabalhou para controlar todas as demandas do Ministério Público (MP) ao governo sobre o vírus, provocando revolta entre os pares.
Não foi a única ocasião em que Aras humilhou o MP para servir aos interesses de quem devia fiscalizar. Brandindo uma heroica resistência à “criminalização da política”, sua PGR arquivou inquéritos contra um amplo espectro de figuras públicas, de Carlos Bolsonaro a Lula.
Promoveu, ainda, um inédito “desdenunciamento” — do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que três meses antes havia sido acusado de corrupção passiva pelo recebimento de propina de uma empreiteira no petrolão. Desmontou as estruturas internas de combate à corrupção, reduziu equipes e acabou com as forças-tarefas.
Ao lidar com opositores e críticos, foi truculento. Promoveu inquisições contra procuradores que não se submetiam a seu comando ou que suspeitava terem vazado informações a jornalistas. Processou professores universitários que o chamavam de “poste-geral da República”. Tentou agredir um colega que o enfrentou numa reunião e fez ataques sexistas contra uma subprocuradora solteira que o cobrou sobre sua postura em relação à Lava-Jato.
Nas eleições de 2022, fingiu que não viu o golpe que Bolsonaro articulava, com seus ataques à credibilidade do sistema eleitoral e das urnas eletrônicas. Depois da vitória de Lula, classificou os bloqueios de caminhoneiros nas estradas como “rescaldo indesejável, porém compreensível” da eleição.
Visto em perspectiva, o legado de Augusto Aras vai bem além de uma lista de episódios lamentáveis. Ao subjugar o MP, deixando Bolsonaro e o Centrão sem contenção, o anti-PGR neutralizou o papel do MP no sistema de freios e contrapesos da democracia brasileira.
Com isso, obrigou o Supremo Tribunal Federal a agir, exacerbando seu próprio papel e produzindo uma disfunção que já causou e ainda causará sérios problemas. Mesmo assim, há quem queira lhe dar mais um mandato, avaliando que seu “garantismo” será providencial ao governo Lula. Para Lula, pode ser bom. Para o Brasil, certamente não.