Brasil pode sofrer retrocesso histórico contra LGBTs
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Adiada pela terceira vez anteontem (20) pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados, a votação do projeto de lei que prevê a proibição do casamento de pessoas do mesmo sexo traz dúvidas sobre o futuro das uniões homoafetivas já oficializadas no Brasil. Relatado pelo deputado federal Pastor Eurico (PL-PE), o Projeto de lei 5.167/2009 estava engavetado há quase 15 anos e sua votação foi remarcada para a próxima quarta (27). Caso seja aprovado pela comissão, será encaminhado para a apreciação do Senado, sem passar pelo plenário do Congresso. Segundo a advogada Antília da Monteira, especializada em direito dos vulneráveis, mesmo que o projeto de lei seja aprovado, inexistiria a possibilidade de anulação dos casamentos LGBTQIA+ realizados até então.
Monteira baseia sua afirmação no Artigo 5º, Inciso 36 da Constituição Federal. Bastidores, opinião e análise dos fatos mais relevantes da política, na palma da sua mão. Baixe o app UOL “Qualquer nova lei não prejudica o direito adquirido. Não há menor chance de acontecer a anulação de casamentos já celebrados”, afirma a advogada. O casamento entre pessoas do mesmo sexo é reconhecido pelo STF (Supremo Tribunal Federal) desde 2011 no Brasil. Em 2013, o Conselho Nacional da Justiça (CNJ) determinou que todos os cartórios do país realizassem casamentos homoafetivos.
Para Antília Monteira, o projeto de lei viola garantias constitucionais e representa um retrocesso “sem precedentes”. “O projeto vai na contramão de decisão anterior do STF, que é a instância maior do Judiciário. Em decorrência da decisão do STF, o CNJ proíbe que as autoridades competentes se recusem a registrar as uniões LGBTQIA+”, diz a advogada.
O projeto prevê a inclusão no Artigo 1.521 do Código Civil o seguinte trecho: “Nos termos constitucionais, nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento ou à entidade familiar.” Atualmente, o Artigo 1.521 enumera os casos em que o casamento não é permitido, como na união matrimonial de pais com filhos ou de pessoas já casadas. Para justificar a legalidade do PL, Pastor Eurico afirma que o casamento “representa uma realidade objetiva e atemporal, que tem como ponto de partida e finalidade a procriação, o que exclui a união entre pessoas do mesmo sexo”. Monteira rebate, alegando que o Artigo 5º da Constituição determina a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e defende uma mobilização da sociedade civil que impeça a votação, que ela considera “retrógrada” e com cunho religioso.
Os psiquiatras Saulo Vito Ciasca, de 41 anos, e Rafael Isaac Pires Albano, de 37, conheceram-se em julho de 2012, começaram a namorar em 2013 e se casaram em março de 2019, em um cartório
Após 11 anos juntos, eles consideram o projeto de lei um desrespeito à família que eles constituíram. “Pagamos impostos como todo mundo. Por que não teríamos o mesmo direito de constituir família e garantir os direitos de transmissão de bens, de uso de convênio médico, dentre outros? Essas pessoas acham que a legitimidade de um casamento heterossexual diminui se pessoas LGBTQIA+ se casarem também”, protesta Ciasca. Apesar da revolta, o casal se diz confiante de que o esforço não passa de uma tentativa de capitalizar votos e fazer “rebuliço” em relação ao tema. “Ele não vai passar. Mas é humilhante e ultrajante ter gente dizendo que minha família é menos família do que qualquer outra”, afirma Albano. Juntos também há 11 anos e casados há três, o escritor e comentarista político Uriã Francelli, de 32 anos, e o empresário e agente de modelos e celebridades Anderson Baumgartner, de 46, consideram o projeto uma tática “nefasta” que tem o objetivo de gerar ruído e tentar lucrar politicamente dentre os eleitores que defendem a “família tradicional”. “Estamos usando as redes sociais para fazer barulho e conscientizar as pessoas sobre a gravidade do que esse projeto propõe. Amor é, acima de tudo, companheirismo e cumplicidade. Para isso acontecer, não importa sexo, raça ou qualquer outra variável. Basta desejar dividir tudo isso”, afirma Baumgartner. Continua após a publicidade Por sua vez, o jornalista e empresário Paulo César Meira, de 41 anos, e o psicanalista e empresário Ulisses Zamboni, de 60, oficializaram sua união durante a pandemia, apesar de eles estarem juntos há 14 anos. Apesar de sentirem-se ofendidos com a apresentação do projeto na Câmara, eles não acreditam que a matéria seja aprovada. Para eles, a iniciativa é mais um sintoma de parte da sociedade brasileira em querer a manutenção do status quo patriarcal e religioso voltado à família única e exclusivamente tradicional biológica. “Estamos inclusive na fila de adoção. Mesmo se a lei ‘retroagir’, acredito que existem outras formas de ajustar a situação das crianças e ampará-las juridicamente, para garantia da estabilidade e da proteção das suas vidas. As questões de herança, por exemplo, precisarão ser previamente pensadas, pois fica muito mais complexo passar para filhos adotados os bens de pais não casados oficialmente”, pondera Zamboni. Namorando desde 2017 e casadas desde 2020, a jornalista Maria Cristina Di Leva Abbade e a radialista Nayara Abbade dizem que sentem medo de perder seus os direitos. Sua preocupação inclui temas como adoção de filhos, compra de imóvel e direito de sucessão. Assumidamente cristãs, elas acreditam no amor de Deus e na família que constituíram. “Muitos casais e muitas pessoas sofrem preconceito em casa, com os próprios pais. O direito ao casamento é uma afirmação de que somos dignas de formar uma união estável e de cuidar uma da outra, como qualquer casal”, afirma Maria Cristina.