Europa já disciplinou redes sociais
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Em um tuíte, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, passou o recado para as corporações globais que dominam a internet. No dia 25 de agosto, data em que começou a valer nos países membros da União Europeia e do Parlamento Europeu a regulamentação da nova lei que mira as plataformas digitais, a chamada Lei de Serviços Digitais (DSA, na sigla em inglês), Leyen sintetizou o objetivo da nova legislação.
“Estamos trazendo os nossos valores europeus para o mundo digital”, afirmou. “Com regras rígidas sobre transparência e prestação de contas, nossa Lei de Serviços Digitais visa proteger nossas crianças, sociedades e democracias. A partir de hoje, plataformas online muito grandes deverão aplicar a nova lei.”
Mais direta, impossível. Com apenas quatro linhas de texto, Ursula von der Leyen deu o tom do novo tratamento legal que a Europa passou a impor às chamadas “big techs”, um conjunto de regras que tem sido acompanhado atentamente pelo resto do mundo e que passa por temas de projetos de lei em tramitação no parlamento brasileiro.
A Lupa ouviu especialistas para compreender as principais mudanças impostas pela nova legislação europeia, que foi estabelecida após meses de negociações e debates com especialistas e representantes das companhias digitais.
Basicamente, o principal objetivo da lei aprovada pelos europeus diz respeito aos direitos do cidadão, do consumidor, do usuário das redes digitais, protegendo a sua privacidade, garantindo transparência sobre as engrenagens que estão por trás do conteúdo que ele recebe, além de dar a esta pessoa o direito de escolher se deseja determinado tipo de filtro dessas informações, e como isso funciona.
As regras estabelecem a exigência de compartilhamento de dados básicos das empresas, como o número de usuários cadastrados, e sobre como esse banco de dados é estruturado e manipulado.
Pela lei, todas as grandes plataformas e mecanismos de pesquisa que tenham mais de 45 milhões de usuários mensais na União Europeia terão de se submeter à nova legislação. Neste grupo estão empresas como Google, Meta (dona do Facebook e Instagram), X (antigo Twitter), Microsoft e TikTok. Ao todo, 17 plataformas digitais e duas ferramentas de pesquisa foram consideradas de “grande dimensão”.
No primeiro grupo estão Alibaba AliExpress, Amazon Store, Apple AppStore, Booking.com, Facebook, Google Play, Google Maps, Google Shopping, Instagram, LinkedIn, Pinterest, Snapchat, TikTok, X, Wikipédia, YouTube e Zalando. Os buscadores são Bing e Google. Para todas essas empresas, a lei já está valendo. O descumprimento das normas pode resultar em uma multa de até 6% da receita global da companhia. Se a situação persistir, o serviço corre o risco de ser suspenso na Europa.
O pacote de medidas estabelece regras para remover conteúdos ilegais, amplia a transparência dos algoritmos, reforça a necessidade de identificar comerciantes online para evitar golpes e assegura ao usuário o direito de ter canais de fácil acesso para reclamações. Os conteúdos publicitários voltados a menores de 18 anos ficam proibidos. Também é proibido direcionar anúncios a partir de dados pessoais sensíveis, como etnia, religião, posicionamento político ou orientação sexual.
“A nova lei dá uma melhor dimensão do papel que essas empresas passaram a ter na vida cívica e na economia da população. A Lei de Serviços Digitais é o primeiro passo nesse caminho, para ir afunilando em relação a essas obrigações e direitos básicos do usuário europeu”, diz Rafael Zanatta, diretor da organização Data Privacy. “As regras exigem o comprometimento com direitos básicos do usuário, que passa a ter mais controle sobre seus dados e o que recebe. É uma lei para trazer, basicamente, mais dignidade no tratamento do cidadão. Lembra os primórdios da regulação ambiental, por exemplo, que era muito básica no início e que, com o tempo, passou a regular o setor com muito maior detalhe.”
As regras também passam por maior clareza quanto à moderação de conteúdos removidos ou limitados, com a possibilidade de contestar decisões. E fala em transparência sobre os algoritmos usados para a recomendação de conteúdos ou produtos. Os usuários podem escolher o que querem receber.
“Na Europa, o Instagram já passou a oferecer aos usuários a opção de ver conteúdo de forma personalizada, com direcionamento de conteúdo ou de forma livre. Isso não existia, até então. O TikTok está fazendo mudanças para atender o controle etário. Essa legislação, portanto, se volta para regras mais destinadas ao respeito dos direitos do consumidor”, diz Zanatta.
O professor e advogado especialista em direito do consumidor na era digital, Marco Antônio Araújo Júnior, afirma que a regulamentação trazida pela lei não tem o objetivo de provocar censura ou acabar com a liberdade de expressão, um tipo de argumento muito difundido pelas big techs para escaparem das exigências. “Ao contrário, ela busca proteger usuários das dinâmicas manipuladoras dos algoritmos, das notícias falsas, dos conteúdos indevidos (como pornográficos ou criminosos), dos discursos de ódio e, sobretudo, da publicidade abusiva e enganosa, especialmente para os hipervulneráveis, como crianças, adolescentes e idosos”, comenta.
Para os especialistas, a obrigação de explicar como funcionam os algoritmos e permitir que o consumidor escolha de que forma quer receber os conteúdos – identificando se quer interagir somente com quem foi adicionado por ele às redes ou com quaisquer outras contas de pessoas – faz com que as big techs passem a cumprir a regra de transparência na relação de consumo digital, deixando o consumidor menos vulnerável às práticas de marketing abusivo.
“A regulamentação das redes sociais, sob a ótica das regras democráticas, é uma discussão mundial. Parece que a União Europeia se antecipou e buscou oferecer alternativas que respeitam os direitos dos consumidores e usuários, sem impedir o trabalho das big techs que pretendam atuar com ética e boa-fé no mercado de consumo digital”, diz Araújo Júnior.
As mudanças que entraram em vigor fazem parte de um pacote legislativo aprovado em julho de 2022 pelo Parlamento Europeu, com o objetivo de ampliar a capacidade de supervisão das plataformas e serviços de busca.
As medidas tomadas pelos europeus devem ter influência direta nos debates sobre o tema que estão em andamento na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Para Bruno Bioni, sócio fundador da Bioni Consultoria e diretor do Data Privacy Brasil, trata-se de um momento positivo para que o país finalmente avance em uma legislação, mas que atenda às peculiaridades nacionais.
Hoje, no Senado, tramita o Projeto de Lei nº 2.338/2023, que pretende regulamentar o uso da inteligência artificial no Brasil. Além dele, a Câmara discute ainda o PL 2.630/2020, conhecido como “PL das Fake News” e que trata mais objetivamente de obrigações das big techs. A proposta tem sido alvo de forte lobby contrário por parte destas empresas.
“Estamos vivendo um momento bastante singular no Congresso Nacional. Temos duas importantes propostas de regulação sendo debatidas. A primeira, sobre inteligência artificial, ganhou força com a criação de uma comissão temporária. Isso permite que o Senado possa fazer um esforço concentrado para examinar a matéria à altura da sua complexidade. É um local específico para debater de maneira aprofundada e verticalizada o tema”, comenta Bioni. “Via de regra, quando você tem esse cenário de uma comissão dedicada ao tema, isso habilita que, depois, o projeto de lei possa ser apreciado diretamente pelo plenário.”
Já sobre o PL 2.630, o especialista rejeita o apelido de “PL das Fake News”, porque diz se tratar de um projeto que pretende garantir a liberdade e a transparência na internet. “Esse projeto traz várias obrigações transversais estruturais, garante a transparência do devido processo às plataformas, para melhorar, sobretudo, o escrutínio público sobre como elas moderam conteúdo e as diversas obrigações de segurança para os seus titulares”, diz Bioni.
A grande questão hoje em aberto, porém, é sobre quem vai regular essa futura lei. Este foi um dos motivos do PL ter travado no Congresso. Ainda não há data para que o texto volte a ser analisado. “A gente tem um cenário que é benéfico, para que ambas as casas possam entrar em um acordo político, para que os textos tenham consenso e esse pacote regulatório possa ser o mais harmônico e coerente possível, porque são temas que se intercruzam e podem ter algum tipo de sobreposição”, conclui Bioni.