Igreja Universal quer obrigar estudantes a ler a Bíblica
Foto: Montagem com fotos de Paulo Sérgio/Câmara e Divulgação
Da Bíblia Sagrada como material paradidático no ensino público a obrigatoriedade de atrações gospel em eventos, bancadas evangélicas ao redor do país têm apostado em projetos inconstitucionais para mobilizar o eleitorado cristão. Levantamento feito pelo GLOBO identificou 36 propostas em tramitação no Congresso, nos estados e em municípios que ferem a laicidade do Estado, prevista na Constituição, ou priorizam o cristianismo em detrimento de outras religiões.
Os textos que circulam em Brasília, assembleias estaduais (nove projetos) e câmaras municipais (sete) têm poucas chances de aprovação e abrem margem para contestação judicial. Mais da metade foi apresentada por integrantes do Republicanos, ligado à Igreja Universal, e do PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro.
A maior parte das propostas, com 11 menções, refere-se a instituições de ensino e visam estabelecer a obrigatoriedade do estudo da Bíblia na grade curricular ou a presença de exemplares dela nas sala de aula. Na Câmara, Cabo Daciolo (PDT-RJ), hoje sem mandato, e Marco Feliciano (PL-SP) propuseram, respectivamente, a inserção da disciplina Estudo da Bíblia Sagrada e conteúdos criacionistas — corrente de pensamento que explica fenômenos naturais a partir da religião.
Para justificar o projeto de lei, Daciolo afirma que o livro é um dos mais antigos do mundo e que não pertence a nenhuma religião. “Este projeto de lei visa a estimular a leitura dos jovens estudantes, bem como levá-los ao universo de histórias e lições a respeito da vida, dos dilemas morais e éticos tratados”, diz em texto que tramita desde 2017.
Na Câmara de Vitória (ES) ainda tramita um texto de 2008 que propõe a distribuição de exemplares para todos os alunos matriculados na rede municipal da capital capixaba. Em 2012, em Nova Iguaçu, o Ministério Público do Rio impediu a continuidade de uma lei similar.
“A Promotoria considerou a lei inconstitucional, já que viola o princípio do Estado laico e a liberdade de crença da população ao permitir a subvenção de segmento religioso específico (cristão) com recursos públicos, em detrimento das demais religiões”, diz trecho da decisão proferida à época. “O documento destaca que a Lei pode gerar indevida e dolosa violação aos Direitos Humanos de minorias não praticantes da religião subvencionada pelo município”.
O advogado constitucional e cientista social Fernando Bentes, da Universidade Federal do Rio (UFRJ), explica que no Brasil, desde a Constituição de 1891, não há elo algum entre Estado e religião, apenas a liberdade de culto. No caso das escolas, ele aponta que leis como essa excluiriam parte do quórum:
— Todos os projetos que têm como objetivo proteger uma religião específica são inconstitucionais porque misturam Estado e religião e viola a liberdade religiosa por preferir uma fé a outra. A Constituição permite que as escolas públicas tenham ensino religioso, desde que seja facultativo. O aluno não é obrigado a frequentá-lo, seria no último turno, e direcionado a todas as igrejas, mas não pode ter custo para o estado.
Outro tema que se tornou uma frente de atuação das bancadas é a cultura. Há casos de vereadores que tentam, por meio de projetos de lei, impedir a proibição de eventos não religiosos em praças municipais ou obrigar o poder público a contratar atrações gospel.
Esse caso ocorre em Manaus e Fortaleza, duas importantes capitais do país. Na cidade cearense, a discussão teve início no ano passado a partir de texto da vereadora Tia Francisca (PL). Ela argumenta que a medida “contribuirá com a valorização cultural das atrações musicais no segmento gospel regional, e ainda com a socialização familiar e cristã, uma vez que milhares de famílias prestigiam esses eventos”.
Já em Manaus, Raiff Matos (DC) apresentou proposta similar, mas que mira eventos específicos da capital, como o aniversário da cidade e a comemoração do Ano Novo. Na avaliação do criminalista Thiago Jordace, o fenômeno de leis inconstitucionais não data de hoje e tem viés eleitoreiro:
— Os parlamentares agem com má intenção porque mesmo sabendo que é inconstitucional fazem uma lei como bandeira para agradar sua base eleitoral. Não há desconhecimento porque as Casas contam com corpo jurídico capacitado que avisa sobre essas questões. Mas, como não mexe no orçamento nem requer emendas, tramitam facilmente e é uma forma de mostrar serviço.