Orçamento secreto persiste disfarçado
Foto: Pedro França/Agência Senado
Prefeituras e estados deixaram de informar como aplicaram 94% dos recursos recebidos nos últimos três anos via “emendas Pix”, modalidade em que o dinheiro público é enviado por parlamentares a seus redutos eleitorais sem precisar passar pelos ministérios. Levantamento feito pelo GLOBO mostra que, dos R$ 6 bilhões repassados de 2020 a 2022, apenas R$ 400 milhões tiveram seu destino justificado ao governo federal — o uso de R$ 5,4 bilhões segue sendo um mistério. A omissão contraria uma orientação do Tribunal de Contas da União (TCU), que, embora tenha transferido aos tribunais locais a responsabilidade de fiscalizar a verba, recomenda a prefeitos e governadores que enviem relatórios atualizados sobre como estão gastando esses recursos da União.
Uma decisão tomada pelo TCU em março deste ano indicou que todos os beneficiados com esse tipo de emenda parlamentar devem prestar contas da aplicação do dinheiro por meio do sistema Transfere Gov, do Ministério da Gestão. Caso haja omissão na apresentação desses dados, a Corte de Contas poderá abrir a chamada “tomada de contas especial”, uma espécie de auditoria extraordinária na contabilidade dessas prefeituras ou governos estaduais. Seis meses após a decisão, entretanto, o tribunal ainda não definiu critérios, como os prazos e os dados que devem ser apresentados.
Quem mais recebeu recursos via emendas Pix no período foi o governo da Bahia, comandado até o ano passado pelo atual ministro da Casa Civil, Rui Costa. Ao todo, foram R$ 91 milhões repassados aos cofres estaduais, mas apenas R$ 22 milhões tiveram sua destinação justificada. Nos relatórios enviados pela administração local, consta que o dinheiro bancou, por exemplo, a aquisição de duas estações retransmissoras para a TV digital do estado, por R$ 7 milhões.
Um estudo divulgado pela Transparência Brasil em julho deste ano revelou que há uma concentração de repasses pela modalidade a cidades de pequeno porte, com até 10 mil habitantes. Juntas, elas receberam 25% do total alocado por parlamentares em repasses especiais. Ainda de acordo com a entidade, a transferência da fiscalização para os estados torna o problema ainda maior nessas localidades, onde costuma haver baixo rigor nos processos de prestação de contas.
Esse é o caso, por exemplo, da cidade de São Luiz, em Roraima. Com uma população de 7,3 mil, de acordo com o Censo, recebeu R$ 41 milhões em emendas Pix entre 2020 e 2022, mas não justificou como gastou nenhum centavo sequer. No último dia 12, o prefeito do município, James Batista, foi cassado pelo Tribunal Regional Eleitoral sob a acusação de distribuir cestas básicas, dinheiro e viagens durante sua campanha à reeleição. Ainda cabe recurso contra a decisão.
A mesma São Luiz ficou famosa no ano passado após contratar o cantor Gusttavo Lima por R$ 800 mil. O Ministério Público abriu investigação sobre o show, que foi cancelado por ordem da Justiça. Ao GLOBO, Batista disse desconhecer que a cidade não incluiu os relatórios de gestão no sistema do governo federal. Segundo ele, o valor foi investido em moradia, pavimentação e saneamento básico. Oprefeito também disse já ter explicado ao Ministério Público de onde sairia o dinheiro para o show de Gusttavo Lima. A respeito da destinação dada pelo governo baiano, tanto Rui Costa quanto a atual gestão foram contatados e não se manifestaram.
Para a diretora-executiva da Transparência Brasil, Juliana Sakai, a dinâmica das emendas Pix remete à mesma falta de controle que era observada no caso do orçamento secreto, em que recursos eram repassados a municípios sem identificar o autor da emenda.
— Nas emendas de relator (base do orçamento secreto), a gente não conseguia identificar quem eram os parlamentares que estavam indicando. Agora, a gente sabe quem são esses políticos, mas não para onde o dinheiro está indo — resumiu Juliana Sakai.
O orçamento secreto foi extinto por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) no fim do ano passado. Além da falta de transparência sobre os autores, os recursos eram divididos de maneira desigual entre os parlamentares, servindo como instrumento para o Executivo manejar apoios políticos.
— A gente sabe que o nível de prestação de contas nos municípios é muito inferior, então é necessário ter regras que determinem como esse processo tem que ser feito e que as informações sejam colocadas em dados abertos para que a gente possa fazer o controle disso — afirmou a executiva.
Chamadas oficialmente de “transferências especiais”, as emendas Pix foram criadas pelo Congresso em 2020 sob a justificativa de reduzir burocracias na hora de parlamentares destinarem recursos federais a aliados. Na prática, elas funcionam, de fato, como uma transferência bancária. Por exemplo: para uma prefeitura conseguir verba pública do governo federal, em geral precisa assinar um convênio com um ministério, que contenha um plano de trabalho definido, com objetivos e metas, além de contrapartidas. Cidades que descumprem essas regras ficam impossibilitadas de receber recursos. Isso não se aplica,contudo, às emendas Pix.
No caso delas, deputados e senadores indicam os beneficiados, e o dinheiro apenas cai na conta de prefeituras e governos, que gastam como julgarem conveniente, desde que não seja para pagar salários ou dívidas.
Mas nem mesmo essa regra tem sido cumprida. Um relatório da Controladoria-Geral da União (CGU) de dezembro de 2022 já apontava para os problemas na transparência desses gastos. De uma amostra de 15 transferências, o órgão de controle encontrou casos em que os valores foram usados para pagar salários de servidores, o que é proibido no caso desse tipo de emenda.
Apesar de diminuir as burocracias, a CGU destacou que a Constituição determina a prestação de contas para qualquer entidade que utilize verbas públicas. “Nessa tentativa de fazer uma redistribuição de recursos mais célere, algumas previsões fundamentais foram relegadas. Entre elas, a obrigação expressa de demonstrar a aplicação dos recursos repassados por meio de transferências especiais”, apontou a CGU.