Documentos desmentem governo sobre base de Alcântara

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Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

Uma série de documentos produzidos por um grupo de trabalho formado por onze ministérios, obtida pela Folha, demonstra que está em fase avançada um plano de remoção de cerca de 350 famílias quilombolas de Alcântara, no Maranhão. O objetivo é permitir a ampliação do CLA (Centro de Lançamentos), comandado pela Aeronáutica, a fim de alugar espaços para operações de outros países, como os EUA, uma das prioridades do governo Jair Bolsonaro.

Os papéis contradizem a versão apresentada por escrito e pessoalmente pelo ministro Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia) ao Congresso Nacional. Em 10 de abril, ele disse em uma comissão da Câmara dos Deputados: “Quanto à pergunta sobre se haverá a expansão da área, devo dizer que não. A área estabelecida do centro é aquela já definida. Não existe uma questão de expansão”.

Na mesma audiência, o ministro repetiu: “Quanto a expandir, nós não temos em mente agora essa expansão”. Em um ofício encaminhado à Câmara em resposta a um pedido de esclarecimentos da bancada do PSOL na Casa, datado de 23 de maio, Pontes reafirmou que “não se pode afirmar que populações locais interessadas serão diretamente afetadas por ele [acordo]”.

A Aeronáutica e o núcleo do governo Bolsonaro consideram a reativação do CLA uma pauta prioritária. A intenção é criar uma empresa estatal, a Alada, que funcionaria como uma locadora de terrenos e equipamentos para outros países lançaram artefatos espaciais em Alcântara.

A Aeronáutica promete arrecadar R$ 140 milhões por ano, número que é colocado em dúvida pela oposição ao governo. A primeira iniciativa está sendo tratada com os EUA. Já assinado entre os dois países, o AST (Acordo de Salvaguardas Tecnológicas) precisa ser aprovado pelo Congresso.

O AST é discutido com os EUA desde o governo Michel Temer (2016-2018). Com a posse de Bolsonaro, autoridades do governo passaram a minimizar os impactos sociais do AST. Os documentos agora obtidos pela reportagem sobre o GT (Grupo de Trabalho) número 13, que somam mais de 130 conjuntos produzidos ou coletados pelo GT, mostram uma outra realidade.

O grupo é formado por onze ministérios, órgãos como o Incra, e fundações como a Palmares. Os papéis incluem mapas e atas das conversas que mostram todo o plano de expansão da área e a consequente retirada das famílias, o que poderia ocorrer até setembro de 2020.

“Será necessário realizar o deslocamento de famílias (aproximadamente 350) de alguns quilombos de Alcântara para áreas mais distantes da faixa litorânea, onde outras comunidades já se encontram situados”, diz, por exemplo, uma apresentação do MMFDH (Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos).

O mesmo documento reconhece: “Essa iniciativa, como já sabemos, trará alterações na delimitação do território que tradicionalmente [os quilombolas] ocupam, bem como aos modos de vida das comunidades afetadas e sua relação com os recursos naturais ali encontrados”.

O governo também admite, citando um laudo antropológico, que o município de Alcântara foi fundado em 1648 e que o Maranhão chegou a ter 133,3 mil escravos. Alcântara hoje tem 21,8 mil moradores, dos quais 77% se declararam quilombolas. Para os moradores, agora há uma reedição do que viveram a partir de 1983, quando a ditadura militar (1964-1985) realizou a remoção de mais de 300 famílias de 24 povoados para a criação do núcleo central do CLA.

Está pronta até mesmo uma campanha de marketing, produzida pela pasta de Marcos Pontes, a ser divulgada em redes sociais para convencer os moradores a aprovarem as remoções. Com a hashtag “Alcântara Ajudando o Brasil”, a campanha mostra um morador negro sorrindo ao lado de textos como: “Alcântara, gerando benefícios a todos!”

Também há sugestão de camisetas, da cor azul escura, com os dizeres da campanha e uma sugestão: “Trocando ideia. Tire todas suas dúvidas sobre o Acordo de Salvaguardas”, em referência aos EUA. O texto da campanha diz que para “amenizar resistência”, a ideia é “iniciar um movimento social de apoio e replicação de discurso otimista para integrar as comunidades e sociedade como um todo sobre a relevância do tema”.

Um outro documento produzido pela Sepir (Secretaria Nacional de Promoção de Igualdade Racial), vinculada ao MMFDH, propõe criar uma “Linha de diálogo” que teria como uma das metas: “Recuperar a credibilidade do Estado junto às comunidades: ganhar corações e mentes”.

Algumas das necessidades da comunidade, segundo a Sepir, poderiam ser “atendidas de imediato”, como distribuição de bolsas de estudo e de computadores e instalar uma antena para conexão de internet.

Embora os documentos mostrem a vinculação entre o acordo com os EUA e a remoção das famílias, o texto da Sepir diz que deve ser espalhado o contrário, que é necessário “esclarecer [às famílias] que o AST não é vinculado a Alcântara”.

Outro documento produzido pelo GT no mesmo dia, em 6 de junho passado, diz textualmente que o “insumo essencial” da “proposta de conciliação fundiária a ser apresentada para a comunidade” é o “cronograma de tramitação do AST no Congresso”.

Um “documento base” sobre o plano do governo “para ação integrada de conciliação fundiária” em Alcântara também associa diretamente a remoção das famílias ao AST. “Ressalta-se que a ratificação, pelo Congresso, do AST com os EUA, é uma condição ‘sine qua non’ [indispensável] para que se prossiga nas demais fases subsequentes. […] O ministro [Marcos Pontes] está pessoalmente empenhado no sucesso das ações incumbidas ao MCTIC, tanto para a assinatura do Acordo quanto no esclarecimentos da comunidade local”, diz o documento.

O texto da Sepir sugere ainda um “momento de escuta das comunidades, ouvir frustrações, histórias, expectativas e anseios”. Outro papel diz que “a primeira conversa precisa ser apresentação do plano de consolidação da base nos 12 mil hectares a serem desocupados”.

Os termos usados em vários dos documentos, como “diálogos” e “conversas”, desconsideram um protocolo de consulta já estabelecido pelos próprios quilombolas com base na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).

Tornada lei no país em 2004, a Convenção prevê que qualquer ação do Estado que afete comunidades tradicionais deve ser objeto de um processo de consulta prévia, livre e informada. A Folha revelou na semana passada que o governo pretende obter da AGU (Advocacia Geral da União) a revisão de um parecer do órgão de 2006 que equiparava comunidades indígenas a quilombolas no tocante à aplicação da Convenção.

No último dia 1º, a Comissão Arns, criada em fevereiro por um grupo de notáveis para promover os direitos humanos, apontou em carta aberta que inexiste um estudo de impacto ambiental para o funcionamento atual do CLA e que “não é possível dar sequência à expansão da Base sem que detalhado estudo mostre à sociedade brasileira seus verdadeiros impactos”.

A Comissão estabeleceu ser “fundamental que se realizem as consultas previstas pela Convenção 169” e pediu a garantia da “propriedade constitucional das comunidades quilombolas”, antes do que “nenhum deslocamento possa ser realizado”.

Para a deputada federal Áurea Carolina (PSOL-MG), órgãos do próprio governo entram em contradição, pois o Ministério da Defesa já admitiu que haverá a retirada das famílias, enquanto o ministro Marcos Pontes nega.

“Eu vejo como uma estratégia de tentar enganar os moradores e a opinião pública, procurando dizer que o acordo não afetará as comunidades. O governo manipula a informação para confundir lideranças quilombolas. É de uma perversidade que nos assusta”, diz a parlamentar.

OUTRO LADO
Em nota à Folha, o MCTIC voltou a dizer que “a área atual do CLA é suficiente para as operações espaciais previstas para acontecerem após as etapas de aprovação do AST” pelo Congresso e “a estruturação do modelo de negócios do CLA”.

Indagado duas vezes sobre os documentos do GT, o ministério não comentou. Afirmou ainda que “todo o processo para viabilizar as operações do CLA vai contar com amplo diálogo com a comunidade da região e governo local e inclui iniciativas de capacitação da população e melhoria da infraestrutura da região”.

Folha