Bolsonaro trava demarcação de terras indígenas
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O mundo do povo indígena Tupinambá de Olivença encolheu. Essa é a história recontada de geração para geração nas aldeias onde vivem 4.600 parentes da etnia no litoral sul da Bahia, nos municípios de Una e Ilhéus. “Estamos aqui desde sempre. Fomos dos primeiros povos a ter contato com os colonizadores. Nossos mais velhos diziam que nosso território ia de água a água, sem fronteira”, conta o cacique Ramon. Séculos depois, eles conseguiram a delimitação de uma área um pouco maior que a cidade de Curitiba, constantemente alvo da cobiça de empresários e fazendeiros pela proximidade a praias paradisíacas de Ilhéus e plantações de cacau. Já tem uma década que o Governo brasileiro reconheceu formalmente a etnia e delimitou, com base em uma série de estudos antropológicos, que ela tem direito a 47.376 hectares de terra. Desde então, os Tupinambá estão prontos para ter seu território demarcado, mas não conseguem avançar.
À morosidade histórica que ronda as demarcações de territórios indígenas no Brasil —um direito garantido a eles pela Constituição—, agora se somam novos empecilhos. Pedidos de reanálise de processos demarcatórios em distintos órgãos federais e mudanças na composição dos grupos de trabalho responsáveis pela análise técnica das etnias e de seus territórios alimentam uma aparente estratégia do Governo Bolsonaro para travar as demarcações. Se antes casos como os do povo Tupinambá —já prestes a serem concluídos— sofriam com a paralisação, agora enfrentam o risco de retroceder nas várias fases que envolvem a demarcação oficial de um território. Por isso, o Ministério Público articula ações coordenadas para exigir de Bolsonaro que ele cumpra a lei. E estuda novas estratégias para levar os casos à Justiça. “A gente se vê agora diante de uma situação ainda mais grave que a paralisação, a de processos que andam pra trás”, afirma o procurador Yuri Corrêa da Luz.
O caso dos Tupinambá é emblemático porque está imerso em um vaivém de reanálises. Dez anos depois que a Funai concluiu a primeira fase do processo demarcatório, com a realização de estudos e a comprovação de que a terra indígena estava apta a ser homologada, o processo continua na mesma estaca. Nem mesmo uma decisão tomada em 2016 pelo Superior Tribunal de Justiça em favor da continuidade da demarcação por não identificar vícios e ilegalidades acelerou o procedimento. O Ministério da Justiça, responsável por declarar a terra e enviar o caso para homologação pelo presidente (as últimas etapas para demarcação), o devolveu à Funai no último mês de dezembro, em uma ação pouco usual. O ofício ao qual o EL PAÍS teve acesso pede que o órgão federal indigenista reavalie “ponto a ponto” do caso à luz da tese do “marco temporal”, uma teoria refutada por indígenas e indigenistas.
A tese se baseia em um parecer da Advocacia Geral da União assinado pelo ex-presidente Michel Temer, segundo o qual só poderiam ser demarcadas as terras que estivessem sob posse das comunidades indígenas na data da promulgação da Constituição, em outubro de 1988. Uma decisão nesse sentido já havia sido acatada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009, quando analisou o caso da Raposa da Terra do Sol, mas naquela ocasião os ministros deixaram claro que a decisão não era vinculante (não valia automaticamente para todos os processos). E depois disso a Corte já tomou outras decisões favoráveis aos indígenas. Segundo argumentam as entidades indigenistas, o problema é que muitos povos foram expulsos de suas terras tradicionais antes de a Constituição ser promulgada, durante a ditadura militar.
“Em 2018, o processo dos Tupinambá já havia sido devolvido para a Funai para análise dos mesmos requisitos. E a Funai reafirmou todos os estudos técnicos, antropológicos e administrativos. Agora, novamente, foi devolvido”, conta o assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Adelar Cupsinski, que tem acompanhado o caso. Pelo menos outras 16 terras indígenas já prontas para serem declaradas e homologadas também foram devolvidas à Funai, segundo contabilizam entidades indigenistas e conforme noticiou a Folha de S. Paulo. Quando recebe os processos de demarcação, o Ministério pode assinar a declaração do território ou pedir diligências. No entanto, procuradores dizem que o Governo vem encaminhando reanálises sem justificativas plausíveis.
Enquanto aguardam a demarcação, os Tupinambá de Olivença enfrentam conflitos fundiários e são alvo da cobiça de interesses econômicos. O presidente da Embratur, Gilson Machado Neto, chegou a enviar um ofício ao presidente da Funai em julho do ano passado, manifestando o interesse do órgão no “encerramento do processo de demarcação” dessa área. A justificativa é de que “trata-se de uma área de excepcional potencial de desenvolvimento turístico”. O documento oficial cita o interesse do grupo português Vila Galé e, segundo uma reportagem do Intercept, o objetivo seria construir um resort na região onde milhares de indígenas vivem da agricultura de subsistência com venda do excedente e da pesca artesanal. “Nós pertencemos a esse território e existimos para cuidá-lo. A nossa existência mantém a mata atlântica e os manguezais aqui vivos. Nós nunca saímos daqui e não vamos recuar um centímetro”, diz o cacique Ramon. A frase do líder indígena dialoga com a declaração do presidente Jair Bolsonaro de que, enquanto for presidente, nenhum centímetro de terra indígena será demarcada. O presidente, por diversas vezes, já deixou claro que, assim como os militares na época da ditadura, acredita que os índios devem se “integrar á sociedade”. “O índio mudou. Cada vez mais, é um ser humano igual a nós”, afirmou, em uma transmissão no Facebook recente.
O temor de autoridades do Ministério Público Federal (MPF) é que o atual Governo —cuja retórica do presidente defende o integracionismo e a possibilidade de venda desses territórios— esteja fazendo das reanálises uma estratégia estruturada para travar um direito constitucional dos indígenas. “Recuar não é necessariamente uma ilegalidade, mas chama a atenção as justificativas fracas e sem fundamento em reanálises solicitadas tanto pela Funai quanto pelo Ministério da Justiça. O que a gente pode intuir é que se trata de uma política estruturada e não algo ligado a possíveis irregularidades em dois ou três processos”, afirma o procurador Yuri Corrêa. Além dos 17 casos devolvidos pelo Ministério da Justiça à Funai, o órgão federal indigenista tem mandado processos avançados de volta a fases anteriores.
É o caso, por exemplo, de quatro etnias do Vale do Ribeira, em São Paulo. Os territórios Djaikoaty, Ka’aguay Mirim, Peguaoty e Tapy’i/Rio Branquinho tiveram seus estudos técnicos e antropológicos finalizados no ano passado, mas quando os processos chegaram à Presidência da Funai, foram remetidos novamente para análise. O MPF recomentou que esse retrabalho não seja feito. Argumenta que não há base legal para fazê-lo e que seria “antieconômico”, já que os estudos são financiados pela União. “É absolutamente inédito e inusitado um processo de demarcação andar pra trás”, pontua Yuri Corrêa, responsável pelos casos do Vale do Ribeira. Ele diz que casos como este tem se replicado em outros estados e que procuradores planejam ingressar com ações coordenadas contra eles.
Caso a Funai não acate a recomendação, o Ministério Público estuda novas estratégias judiciais. Primeiro, deve solicitar que a Justiça revogue os atos que fizeram os processos regredirem sob pena de multa. Caso não haja resultado, deve pedir a responsabilização dos gestores por improbidade, já que vê nesses atos a violação do princípio da legalidade e dano ao erário. O EL PAÍS entrou em contato com a Funai e o Ministério da Justiça para saber quais processos retrocederam nas fases de demarcação, mas não obteve retorno. Os órgãos também não responderam sobre as acusações de que essas reanálises seriam uma estratégia para travar as demarcações.
Outros atos que trazem mais morosidade ao processo demarcatório são as substituições dos integrantes dos grupos de trabalho responsáveis por estudar as etnias e os territórios reclamados por ela, sem necessariamente dialogar com os indígenas. Além disso, a Funai tem comunicado à Justiça seu “desinteresse” e desistência em diversas ações que protegem a permanência dos indígenas nos territórios por decisão liminar enquanto o processo de demarcação está em andamento. Uma ação que pode abrir espaço para que eles sejam despejados, por exemplo. A Funai também tem interrompido a distribuição de cestas básicas a indígenas que coupam territórios ainda não demarcados no Mato Grosso do Sul, uma ação que também tem sido questionada pelo MPF. Para a assessoria jurídica do Cimi, um caminho para os indígenas garantirem seu direito é acionar a Justiça.
Quando assumiu o Governo, Bolsonaro herdou 54 terras já julgadas para demarcar, conforme noticiou o jornal O Globo. No seu primeiro ano de Governo, outras decisões foram tomadas em favor da demarcação das terras indígenas, como por exemplo as de Bakairi, no Mato Grosso, e de Cachoeirinha, no Mato Grosso do Sul. Mas nem mesmo as decisões da Justiça Federal foram suficientes para que os processos avançassem. O não cumprimento dessas decisões pode provocar o pagamento de multas à Funai. “Como se trata de uma entidade com personalidade jurídica própria, esse recurso sai do próprio Orçamento, que pode ficar mais prejudicado do que já é para a promoção dos direitos indígenas”, explica Yuri Corrêa. E emenda: “A única coisa positiva se o presidente tivesse mudado a demarcação para o Ministério da Agricultura é que os recursos das multas iria deixar de impactar o Orçamento da Funai e iria sair da União”.
A desaceleração das demarcações não é uma novidade do Governo Bolsonaro. É um problema que vem desde o Governo da ex-presidenta Dilma Rousseff, considerado um dos que menos demarcaram desde a redemocratização do Brasil —quando a Constituição de 1988 deu um prazo de até cinco anos para o país reconhecer os direitos dos indígenas—. Durante os dois anos de Governo de Michel Temer, a situação se agravou. A única terra demarcada nesse período teve seu processo finalizado graças a uma decisão judicial e logo depois virou alvo do Governo Bolsonaro, que prometeu revisar todas as demarcações dos últimos dez anos. Ela poderá ser uma das primeiras etnias a perder seu território neste Governo.
Uma das consequências deste congelamento nas demarcações e da eventual revisão de terras já demarcadas pode ser o “aumento na violência contra os povos indígenas”, destaca o secretário-adjunto do Cimi, Cléber Buzatto. O ritmo lento para solucionar os impasses fundiários provocam ações de retomada, quando os indígenas ocupam e buscam reaver territórios que afirmam terem pertencido a seus ancestrais e atualmente são ocupados por não-índios. Um relatório do Cimi aponta que, no ano passado, o número de terras indígenas invadidas dobrou na atual gestão. “Estamos muito preocupados porque a qualquer momento pode haver decisões da Funai que podem tornar fato consumado a anulação de procedimentos administrativos, o que configuraria um prejuízo inestimável aos povos indígenas e a potencialização como consequência dos níveis de conflito. O aumento das invasões das terras indígenas é resultado agora não só da omissão, mas da ação do Governo”, afirma Buzatto.
Processo de demarcação:
1. Funai realiza estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais para identificar a terra indígena.
2. Presidência da Funai precisa aprovar os estudos realizados para delimitar a terra indígena, com a sua conclusão publicada no Diário Oficial. O processo é então enviado para o Ministério da Justiça, que deve expedir a portaria declaratória.
3. O Ministério da Justiça é o responsável por expedir a portaria declaratória, autorizando que as terras sejam demarcadas fisicamente, com a materialização dos marcos e georreferenciamento. Em seguida, envia o processo para a homologação pelo presidente.
4. A última fase do processo de demarcação é a homologação das terras que possuem os seus limites materializados e georreferenciados. Esse procedimento é feito por meio de decreto presidencial.