Em bairro de SP, criança tem 85% mais chance de estupro
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No Capão Redondo, na zona sul de São Paulo uma criança de até cinco anos tem 86 vezes mais risco de sofrer uma violência sexual do que as que moram em um distrito mais rico como Alto de Pinheiros, na zona oeste, por exemplo. Em 2018, foram notificados 607 casos de violência sexual contra crianças nessa faixa etária em toda a capital paulista, um aumento de 47% em relação a 2016, de acordo com os números da Secretaria Municipal de Saúde. Os dados fazem parte da segunda edição do Mapa da Desigualdade da Primeira Infância (uma faixa etária que vai de 0 a 6 anos), divulgado nesta quarta-feira pela Rede Nossa São Paulo.
O levantamento faz o cruzamento de dados públicos e privados com base em 28 indicadores de cada um dos 96 distritos da cidade. E aponta como o local de moradia pode ser determinante para o desenvolvimento de uma criança.
Marsilac, no extremo sul, e São Lucas, na zona leste, são os piores distritos de São Paulo para a primeira infância: aparecem oito vezes entre os 24 piores nos indicadores do Mapa da Desigualdade. Uma criança que nasce em Marsilac, por exemplo, tem 23 vezes mais chance de morrer antes de completar um ano do que uma criança de Perdizes (zona oeste da cidade) e 18% dos nascidos vivos no local são de mães menores de 19 anos —a média da cidade é de 10%. Em Moema, distrito nobre, a porcentagem de crianças fruto de gravidez na adolescência é de apenas 0,35%. Em São Lucas, os bebês têm 12 vezes mais risco de morrer antes dos 12 meses do que em Perdizes.
“A primeira infância é importante para desenvolver características cerebrais e cognitivas que se perpetuam nas outras fases da vida. Nosso objetivo é justamente apontar como o território influencia esse desenvolvimento. Investir na primeira infância é investir na cidade”, explica Carolina Guimarães, coordenadora da Rede Nossa São Paulo e uma das responsáveis pelo Mapa. “Uma criança que vive com má qualidade de habitação, com má qualidade de locomoção, já começa a vida em um patamar atrás se pensamos em meritocracia, o conceito mais vigente nos dias de hoje”, acrescenta Guimarães.
São Paulo tem 1,1 milhão de crianças com idade entre zero e seis anos, de acordo com os dados do Mapa da Desigualdade, com base nos números do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Anna Maria Chiesa, especialista em Saúde Pública em desenvolvimento infantil, explica que, até os seis anos, a criança adquire gradualmente habilidades sensoriais, motoras e emocionais para tornar-se um indivíduo com alguma autonomia, mas ainda muito dependente do ambiente em que vive. “Se essa criança vive em uma casa sem saneamento básico, por exemplo, tem mais risco de contrair doenças, e seu organismo vai dedicar mais energia a combater essas infecções e menos para seu desenvolvimento cognitivo”, diz.
No caso de uma violência —como a sexual— sofrida na primeira infância, isso acarreta um “estresse tóxico” para a criança, conforme explica Chiesa. “Esse trauma pode afetar a estrutura cerebral ainda em formação, em um momento da vida em que os neurônios fazem um milhão de sinapses por segundo”, afirma a especialista.
Tanto Guimarães quanto Chiesa concordam que a desigualdade na infância já começa antes de nascer. “A gravidez na adolescência, por exemplo, além de ser um risco maior para a criança, que tem uma mãe menos experiente, é um ônus para a mulher, já que aumenta as chances de evasão escolar e a dificuldade de inserção no mercado de trabalho”, comenta Carolina Guimarães.
As mulheres do distrito de Cachoeirinha (zona norte), por exemplo, têm um acompanhamento pré-natal durante a gestação considerado seis vezes inferior àquele prestado no Itaim Bibi (zona nobre, conhecida por abrigar sedes corporativas). “O pré-natal é fundamental para prevenir a transmissão de mãe para filho da sífilis congênita, por exemplo. Se a mãe der positivo no teste sorológico até o primeiro trimestre da gestação, é possível fazer um tratamento para que o bebê nasça saudável e sem sequelas que acarretem atraso em seu desenvolvimento”, explica Chiesa.
O acesso a creches é outro fator de desigualdade listado no Mapa. Uma criança da Vila Andrade tem que esperar 14 vezes mais (261 dias) para conseguir vaga em uma creche do que uma criança de Guaianases (19 dias). “Essa dificuldade de acesso atrasa o desenvolvimento de habilidades sociais e cognitivas na primeira infância”, comenta Guimarães.