“Isolamento é coisa de comunista”, dizem bolsomínions

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Foto: Arte de Mateus Valadares com foto de Daniel Marenco

Nos últimos dez dias, ÉPOCA acompanhou a rotina de 12 grupos privados de WhatsApp, mantidos desde os tempos da eleição de 2018 em apoio às ações de Jair Bolsonaro. Seus usuários são de diferentes partes do país. Além da adoração ao presidente da República, os grupos têm outra característica em comum: mudaram de opinião sobre os efeitos da pandemia da Covid-19 à medida que o próprio discurso de Bolsonaro oscilou de um lado a outro.

22/03 — Domingo

Na primeira imagem do dia compartilhada no grupo, o presidente Jair Bolsonaro aparece sorridente e saudando colegas militares com uma clássica continência. No início daquela semana, o país confirmava a primeira morte provocada pela Covid-19 e também a transmissão comunitária do vírus. Nos grupos de WhatsApp bolsonaristas, o discurso é de cautela e preocupação em relação à doença. “Passe a cumprimentar seus amigos com uma continência, pois além de evitar o vírus, vai deixar a petezada irritada”, diz uma mensagem.

Gráficos explicam didaticamente a diferença de sintomas entre a Covid-19, uma gripe e uma alergia. Em áudio, um médico que acabara de cancelar consultas e avisar aos pacientes que não haveria previsão de retorno se diz indignado ao observar supermercados, praças e bares “cheios de gente tomando cerveja e se encontrando”, como se não houvesse um grave problema de saúde à espreita.

“Não adianta eu explicar a forma de higienizar as mãos, como usar o álcool gel e máscaras, porque as pessoas não têm é que ir pra ruas. É quarentena. Não é férias escolares”, sintetizou, antes de repetir as recomendações do Ministério da Saúde de autoisolamento.

Um militar da reserva de Foz do Iguaçu veste um jaleco e reclama, em vídeo, de dispositivos da legislação brasileira que impedem Bolsonaro de fechar fronteiras e, com isso, adotar medidas ainda mais restritivas como forma de reduzir o contágio no país. A culpa é de leis que derivam da Constituição do país, ele disse. “Temos uma Carta escrita por parlamentares de esquerda comunista e o objetivo de todo político comunista é a destruição da nação brasileira”, reclamou.

24/03 — Terça-feira

Em meio a políticas de restrição de movimentação, panelaços contra o presidente ganham corpo nas grandes cidades. À noite, Bolsonaro se dirige aos brasileiros em rede nacional de rádio e TV e radicaliza no discurso. O coronavírus é uma “gripezinha” e devem ser isolados apenas idosos e grupos de risco, para preservar ao máximo a atividade econômica no país. O discurso vai na contramão do que diz o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que considera a medida arriscada, por ampliar a presença do vírus e sobrecarregar as redes pública e privada de saúde.

Na mesma noite, mensagens em letras maiúsculas pipocam nos aparelhos. “Não reclame depois que a economia estiver afundada e você ser demitido para reduzir gastos da empresa. Foi vc quem optou por isso, fez baderna, bateu panela e foi a favor de tudo isso!” Outro texto nega o poder de contágio da Covid-19, mencionando o número diário de mortes no mundo por acidentes e doenças decorrentes do fumo e do álcool. “Bolsonaro está preocupado com o futuro, não é com o presente! Esse vírus tem um ciclo e vai passar”, defendeu um homem vestindo jaleco.

25/03 — Quarta-feira

Um vídeo gravado por um gerente de supermercado em frente a caixas registradoras aparece em pelo menos quatro grupos, trazendo um alerta para o “Brasil em colapso”. A fala é mansa, mas sua mensagem uma ameaça: “Na semana passada eu tava vendendo feijão de R$ 4,60, agora tô vendendo de R$ 8. O dinheiro do funcionário público vai achatar. O seu salário vai desvalorizar”

Outro meme sugere que a epidemia teria servido para mostrar que “quase todo brasileiro acredita no socialismo e no comunismo”. As provas seriam o apoio “à coerção estatal”. “Não querem pagar água e luz, deixaram o governo regular o comércio, aceitaram o Estado fechar igrejas e estão aplaudindo a polícia prender os desobedientes, em nome do bem comum.”

Usuários teclam emoticons de palminhas para a personagem do conto de fadas Branca de Neve, que saca uma pistola e mata a tiros o anão Atchim, que tem problemas respiratórios. Em vídeo, figurantes vestidos como presidiários ameaçam trazer o caos ao país. Uma reportagem sobre saques a um supermercado de sete anos atrás é distribuída como se fosse reflexo da crise do coronavírus.

A camiseta do time da “covid-sports” traz o desenho de um vírus verde no peito e o patrocínio de partidos de esquerda, órgãos de imprensa e do governo chinês.

“NOS GRUPOS DE WHATSAPP BOLSONARISTAS, CIENTISTAS, PROFISSIONAIS DA IMPRENSA OU DE QUALQUER OUTRA ATIVIDADE QUE CONTRADIGAM O PRESIDENTE DA REPÚBLICA LOGO VIRAM ALVO DE ATAQUES”

27/03 — Sexta-feira

Críticos da nova política do presidente, os governadores de São Paulo, João Doria (PSDB), e de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM) — até há pouco, um aliado —, são transformados em alvos. Vídeos do goiano elogiando o colega de partido e presidente da Câmara dos Deputados, deputado federal Rodrigo Maia, começam a circular. E também a falsa notícia de que Doria teria determinado que qualquer morte sem causa definida no estado fosse classificada como Covid-19, além de montagens com fotos do político. “Queria mandar um recado aí pra essa galera que fica aí na bateção de panelas nos predinhos de luxo (…) Você que gosta do seu álcool gel na mão, imagina se a gente parar então?”, perguntou um suposto caminhoneiro, com máscara no rosto.

Em áudio, uma velhinha reclama que está à toa “igual a uma dondoca” e disse, desconfiada, que “ninguém mostra um rosto de quem morreu”. Um sósia do apresentador William Bonner apresenta o jornal em regime de home office, do banheiro. “Após presidente Bolsonaro aparecer com o dedo no nariz, dólar dispara”, ironizou.

29/03 — Domingo

Em vídeo, um comerciante disse que “estão todos contra Bolsonaro”, enquanto mostrava barracas fechadas e com frutas estragando. Culpa do isolamento imposto pelo enfrentamento à doença.

“Agora, presidente, só vai no cano de militar, porque com essa corja de bandido no poder, só o regime militar resolve a situação neste país. Conte com o povo trabalhador para dar uma resposta a esses marginais”, disse, sem dizer a quem se referia.

Em outra imagem, moradores de um bairro humilde abrem geladeiras e armários vazios, imitando uma cena clássica do desenho animado Pica-Pau. Um link convidava para a leitura sobre um italiano de 101 anos que se curou da doença.

Um suposto filósofo disse, em texto, que a imprensa “tem a seu favor o coronavírus e um confinamento obrigatório de uma população desprotegida intelectualmente”. O texto viralizou em dez dos 12 grupos. Nas discussões, fica clara a crença de que a cura para a doença já chegou. A culpa pelo clima de “apocalipse” é da “extrema-imprensa”.

“O Ministério da Saúde começou a distribuir medicamento eficaz no combate ao coronavírus. Nenhuma TV divulga porque só querem disseminar pânico”, fabulou o autor do post, que também viralizou.

31/03 — Terça-feira

Antes mesmo de o assunto dominar o encontro diário de Bolsonaro com jornalistas no cercadinho do Palácio da Alvorada pela manhã, começam a pipocar nos grupos imagens do pronunciamento do diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, alertando sobre a necessidade de países levarem em conta as condições dos trabalhadores informais impactados pela crise.

“Algo mudou na OMS?”, dizia o título provocativo, dando a entender que a entidade defendia a retomada imediata da atividade econômica, o que não era verdade. O vídeo é interrompido antes de Adhanom reforçar a importância do isolamento social e dizer que os governos precisam proteger a população mais vulnerável.

Uma enquete anima outro grupo: “Você acha que com as decisões de manter a população nas suas casas, qual índice aumentará?”, aparecia entre as respostas as opções a) Obesidade; b) Gravidez; c) Maria da Penha; d) Divórcio; e) Cirrose. Uma entrevista de Bolsonaro ao apresentador da RedeTV! Sikêra Júnior, no dia anterior, se espalhava.

Tendo como cenário uma estante de livraria, um jovem de camisa polo branca e sotaque nordestino mistura um poema de Carlos Drummond de Andrade com uma música de Renato Russo. “E agora, José? O comércio fechou, a luz apagou, o povo sumiu, a quarentena chegou. E agora, José? Você sem abraço, que se isola dos outros.”

Uma antiga esquete de humorista sobre o excesso de notícias ruins e mortes na TV é adaptada para os tempos do novo coronavirus. Informação de serviço e interesse público é tratada como estorvo.

“Você ainda nem tomou o café e a TV já diz, morreu 20. E aí, pra você ficar ainda mais lascado, ele manda: e ainda tem cinco em coma. Só que aqueles cinco já morreram. Aquilo é uma reserva que ele guarda pra meio-dia. Porque se não morrer ninguém? Tem cinco.” Em outro vídeo curto, de apenas 15 segundos, boletos em série e uma carteira vazia ornam uma mesa de escritório sem funcionários.

À noite, Bolsonaro vai à TV e modera o discurso. Trata a pandemia como o “maior desafio de nossa geração”, e não mais como “uma gripezinha” ou “resfriadinho”. “Agradeço e reafirmo a importância da colaboração e a necessária união de todos num grande pacto pela preservação da vida e dos empregos. Parlamento, Judiciário, governadores, prefeitos e sociedade”, declarou.

01/04 — Quarta-feira

A alteração do discurso do presidente sobre a doença fica apenas na TV. Nada muda na distribuição de conteúdo nos grupos de WhatsApp bolsonaristas, tampouco o conteúdo bélico contra autoridades que vêm adotando estratégias de contenção da pandemia indicadas pela OMS. Uma suposta moradora da Alemanha sugere que o índice de mortes naquele país seria baixo porque lá não existem “governadores corruptos, nojentos, maldosos, impiedosos, frios, desumanos e calculistas”.

“Os governadores querem deixar vocês todos presos dentro de casa, para vocês terem uma depressão profunda. Ficarem tristes, desanimados e desconsolados. Vou dizer uma coisa para vocês: levanta, nação! Levanta, povo! Não ouvem o que esses governadores têm a dizer, não aceitam, não se sujeitam. Levantem, vão pro trabalho!”, ela disse gritando.

A negação do poder de contágio e de letalidade do coronavírus prevalece. “Existe o vírus, existe. O vírus mata? Mata. Mas o povo brasileiro tem o sol, abençoado”, disse uma mulher, que atribuiu ao sol o poder de cura da doença, embora não se tenha notícia de qualquer estudo que indique tal conclusão.

Em foto, um sósia do governador de Goiás, Ronaldo Caiado, agora desafeto, aparece brigando na rua. Em outro vídeo, um tom de provocação com as manifestações contra Bolsonaro e os governadores. “Tenho um recadinho para vocês, petistas, os da resistência. Não aceitem os R$ 600 do Bolsonaro. Continuem em suas casas. Seus otários. Quando as firmas começarem a demitir as pessoas, aí vocês não vão culpar o presidente não, tá? Culpa os governadores de vocês, culpem os prefeitos”, disse.

Uma mensagem sugere que se coloque a grande imprensa em isolamento. Um apresentador de TV de programa sensacionalista disse que o Paraná registrou 57 mortes e 76 mil casos. “As pessoas acham que é corona? Não, é de dengue. E você não vê ninguém falando isso. Hoje em dia um cara chega com uma faca cravada no peito, é coronavírus”, inventou.

“Por que a mídia não divulga que o general Heleno (Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional), 73 anos, curou do coronavírus em menos de uma semana e voltou a trabalhar? Não pode divulgar notícia boa contra o vírus?”, questionou o interlocutor em outro texto. Na verdade, Heleno foi convidado pelo médico da Presidência da República a se retirar do Planalto por não ter cumprido a quarentena de 14 dias prevista para infectados sem sintomas da doença. Em nota, ele disse que foi ao Palácio “por engano”.

“Estão querendo derrubar o nosso presidente”, apareceu numa mensagem com imagens de antigas manifestações verde-amarelas. “Esses malditos comunistas querem implantar o caos no mundo inteiro e assumir o controle.” Em vídeo de exaltação a Bolsonaro, o narrador diz em tom grave: “Você sabe o que é não poder confiar em ninguém?”. E completa: “Bolsonaro não mudou de opinião, nem está falando muita besteira. Bolsonaro está sendo o Bolsonaro que foi eleito. Você queria o quê?”.

Época