O incrível “pânico espontâneo” de beneficiários do Bolsa Família
A conclusão da investigação da Polícia Federal sobre o pânico que engolfou ao menos 12 Estados do Norte e do Nordeste durante dois dias de maio (18 e 19) devido a boato de que o programa Bolsa Família iria acabar insere-se naquela categoria de coisas de todo tipo que costumam ser comparadas à jabuticaba, que, apesar de também dar na Bolívia, no Paraguai, em Honduras e em El Salvador, dizem que só dá aqui.
A ser verdadeira conclusão como essa da investigação da PF, de que tudo ocorreu “espontaneamente”, o mundo está diante de um dos maiores fenômenos sociais da história. E de um dos grandes mistérios da humanidade.
Senão, vejamos. Trecho da nota oficial da Polícia Federal em que anuncia a conclusão de sua “investigação” sobre um caso que já pertence ao realismo fantástico, afirma que “A PF constatou aumento anormal no volume de saques nas cidades de Ipu (CE) e Cajazeiras (PB) já nas primeiras horas do sábado, dia 18/5. Essas duas cidades apresentaram, proporcionalmente, o maior número de saques dos benefícios no final de semana. A partir das 11 hs da manhã do mesmo dia, verificou-se aumento incomum nas demais cidades que sofreram grande procura nas agências bancárias”
A versão que está prevalecendo na mídia para esse fenômeno, apesar de a PF não ter apontado causa outra para o pânico continental que se estabeleceu no Brasil, é a seguinte: no dia 17 de maio (sexta-feira), a Caixa liberou pagamentos do Bolsa Família antes do que deveria. Pessoas dessas cidadezinhas do Nordeste que encontraram o pagamento antecipado por terem ido sacar o benefício antes da hora – sabe-se lá por que – elaboraram as teorias de que a antecipação se deveu a “abono” que o governo estaria pagando pelo dia das mães – o que jamais ocorrera em outros anos – ou de que o programa iria ser extinto e aquele era o último pagamento, por isso fora antecipado.
A criatividade dessas poucas pessoas de duas cidades minúsculas de regiões ermas do país fez explodir nelas a corrida às agências da Caixa já “nas primeiras horas” de sábado, dia 18. Digamos que isso ocorreu por volta das seis da manhã, ao alvorecer, já que ninguém vai a agências bancárias fazer saques em caixas eletrônicas durante a madrugada, enquanto ainda está escuro, até por questão de segurança.
Entre as 6 e as 11 horas de sábado 18 de maio, segundo a PF, em todas as outras cidades de 12 Estados – uma região de dimensão literalmente continental – os saques começaram a ocorrer em progressão geométrica.
Todavia, a investigação da PF não explica como se deu a disseminação desse boato por região tão grande e tão rapidamente. Muito pelo contrário: nega que a internet tenha sido usada para difundi-lo. Outro trecho da nota do órgão, reproduzido logo abaixo, diz exatamente isso.
“Foi analisada a possível utilização de redes sociais para propagação dos boatos. Foi identificada uma postagem em uma rede social feita pela filha de uma beneficiária da cidade de Cajazeiras informando sobre o saque antecipado de sua mãe. Essa foi a primeira menção na internet a respeito do assunto. No entanto, a postagem desta informação não foi a origem dos boatos. Assim sendo, a internet e as redes sociais apenas reproduziram notícias veiculadas pela imprensa sobre os tumultos em agências bancárias”
Se não houve concurso da internet para espalhar o boato, como é possível que tenha se espalhado por região tão grande e em questão de horas? A PF não diz se foi por telefone, pombo-correio, tambores, código Morse, telepatia ou sabe-se lá mais o quê.
A nota da PF diz que, para chegar à conclusão sobre “pânico espontâneo”, sua investigação identificou e entrevistou “180 beneficiários do Bolsa Família nos estados de Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí e Rio de Janeiro”. E que, “Entre esses beneficiários, constam os primeiros sacadores das cidades de Ipu e Cajazeiras, além daqueles que foram às agências bancárias a partir das 11hs do dia 18/5 nas demais cidades”
Por fim, a nota informa que “Também foram ouvidos 64 gerentes da Caixa Econômica Federal nas localidades onde ocorreu o maior volume de saques”.
A investigação da Polícia Federal durou sessenta dias. As entrevistas de beneficiários e gerentes da Caixa que diz ter feito ocorreram à média de quatro por dia. Alguns diriam que se tratou de uma investigação “Tabajara”, tanto pelo contingente reduzido de pessoas ouvidas em uma região continental em que multidões se desesperaram, depredaram etc. quanto pelo ritmo de trabalho.
A nota da PF em que ela informa que esse episódio impressionante ocorreu por geração espontânea, aliás, não atribui tudo o que ocorreu à antecipação do pagamento do benefício. Apenas diz que os boatos ocorreram sem uma causa só, sendo a antecipação um dos prováveis fatores.
Então, além de essa investigação Tabajara não explicar como o boato se disseminou – se foi por alguns dos meios tecnológicos ou paranormais acima descritos ou pelo que quer que seja –, ainda não diz por que uma hipótese surgida da cabeça de um grupo provavelmente microscópico de pessoas ganhou uma publicidade tão potente.
Para disseminar qualquer ideia por uma região tão grande e tão rapidamente, talvez só fosse possível fazê-lo usando a televisão e o rádio. E seria altamente questionável dizer que a internet, sozinha, conseguiria espalhar o boato tão rápido por uma população empobrecida e entre a qual a inclusão digital deve ser baixíssima.
Até se pode entender a investigação da Polícia Federal não ter sido boa. As polícias brasileiras são mais famosas pela truculência e pela corrupção do que pela capacidade investigativa, que ainda costuma se resumir a torturar suspeitos de crimes para que “deem o serviço” que policiais não querem ou não sabem fazer. O que não se entende é todos ficarem satisfeitos com explicações tão ruins.