Politização da pandemia preocupa CNBB
Foto: CNBB
Se os católicos não podem ir à Igreja, padres e bispos vão até os fiéis. Percorrem as ruas com uma imagem de santo ou santa, com o Santíssimo Sacramento, algumas vezes em cima de carros de som; param diante das casas e rezam, e até atendem confissões em sistema de “drive-thru”. Transmitem missas online de paróquias e capelas pelas redes sociais.
O mais importante é que a sociedade mantenha o isolamento social, afirma o secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Joel Portella Amado, para quem o foco na crise trazida pela pandemia do novo coronavírus deve estar na preservação da vida das pessoas e, em especial, dos mais vulneráveis. É prioridade a redução da curva de contaminação para se evitar o colapso do sistema de saúde e se realizar o tratamento dos infectados, defende.
“A economia vem em segundo lugar”, afirma em entrevista ao Valor, na qual prega o entendimento como solução para o enfrentamento da covid-19, doença que, em menos de três meses, infectou acima de 1 milhão de pessoas e matou mais de 60 mil no mundo, segundo dados divulgados até sábado. “O coronavírus é um vírus da globalização, por isso chama-se pandemia, está em todos os lugares”, diz Portella, que também é bispo-auxiliar da Arquidiocese do Rio.
Instância máxima da Igreja Católica no Brasil, a CNBB não quer polêmicas com o presidente Jair Bolsonaro – de quem foi alvo de ataques na campanha em 2018. Prefere preconizar o diálogo. Há um ano e meio, em vídeo em que tratava da questão indígena, o então candidato classificou a entidade e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) como a “parte podre da Igreja Católica”.
“Eu fico preocupado com a politização da pandemia. No momento, temos que olhar as pessoas, de modo especial para que não se contaminem e, se contaminadas, tenham o tratamento adequado. O quadro é muito complexo”, contemporiza dom Joel, quando questionado se Bolsonaro pode ser responsabilizado por afrontar as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e se a CNBB seria a favor do afastamento do presidente do cargo.
A presidência da Conferência é formada por quatro integrantes: presidente, dois vices e o secretário-geral. A cúpula trabalha de forma colegiada e, na prática, não existe uma hierarquia. No fim de março, o presidente dom Walmor Oliveira de Azevedo repudiou o pronunciamento feito na véspera em que Bolsonaro minimizou o perigo da covid-19, a qual qualificou como “gripezinha”.
“O coronavírus é um vírus da globalização, por isso chama-se pandemia, está em todos os lugares”
Preocupado com os efeitos sobre a economia e, logo sobre sua popularidade, Bolsonaro convocou a população a romper o isolamento social, pedido pela OMS e adotado por quase todos os países afetados pela doença. Arcebispo de Belo Horizonte, o presidente da CNBB afirmou que “a pandemia da covid-19 não pode se compor agora mais e mais com pandemias de irresponsabilidades, de inconsequências e de falta de sentido humanístico e respeitoso para com a dignidade da pessoa humana”.
Na mesma linha, dom Joel Portella argumenta que “não podemos contrapor vidas humanas e economia”. “São, é verdade, duas dimensões do ser humano, com consequências sociais e políticas. No entanto, existe uma hierarquia entre elas. Primeiro, nós cuidamos das pessoas no sentido de não as deixar morrer; e o coronavírus é praticamente certeza de morte”, exagera o bispo, lembrando que ainda não há vacina nem medicação para a covid-19. Os índices de recuperação de pacientes da doença, no entanto, são relevantes.
“A economia vem em segundo lugar, no sentido de garantir às pessoas o sustento necessário para viverem. Esse é o ponto que a Igreja, em sua doutrina social, defende. Primeiro a vida. E as autoridades médicas, os cientistas, estão indicando o distanciamento social como caminho para a preservação da vida”, diz.
Em fevereiro, depois que Bolsonaro divulgou vídeos convocando manifestações contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 15 de março, dom Joel Portella afirmou que “a Igreja estará apoiando as iniciativas que preservem a democracia. Qualquer outra nós precisaremos ouvir, conhecer e até quem sabe interpelar”.
Indagado sobre como poderia questionar o presidente, o secretário-geral da CNBB diz que “interpelar é uma palavra ampla”: “Significa um chamado de atenção, que pode ser feito de diversos modos. O mais lógico, mais racional, é o diálogo. Assim tem sido a prática da Igreja. Todas as falas, como a de dom Walmor [no dia seguinte ao pronunciamento de Bolsonaro], são interpelações. Além disso, interpelar é também dizer que estamos disponíveis para conversar e para ajudar no que for possível.”
Ao comentar a tentativa de aproximação de Bolsonaro com a CNBB – feita no início do ano tendo como interlocutora a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves -, dom Joel lembra que a atual presidência da entidade assumiu em maio do ano passado e, pouco depois, visitou o presidente da República. Visitou também os presidentes do Legislativo (Senado e Câmara) e do STF.
“[A CNBB] Recebeu até agora lideranças de diversos órgãos do governo. Temos conversado com todos, sem distinção. Especificamente a conversa com o presidente Bolsonaro foi muito tranquila. O presidente Bolsonaro falou de suas preocupações e nós, das nossas. Buscamos os pontos em comum em vista do bem das pessoas no Brasil”, diz o secretário-geral.
“Vidas e economia são duas dimensões do ser humano, mas há uma hieraquia: primeiro cuidamos das pessoas”
Para o bispo, “num mundo complexo como o atual não é fácil caracterizar direita ou esquerda, embora as pessoas se autoclassifiquem em um ou em outro lugar político”. Questionado até que ponto as ideias de extrema-direita de Bolsonaro se chocam com valores cristãos, dom Joel acrescenta que a Igreja ”não se identifica nem com um nem com outro” [campo político].
“Ela se preocupa com a pessoa, com o ser humano. Consequentemente, em cada situação, vê com o que pode concordar e até mesmo colaborar e onde é necessário dizer que o caminho seguido não é o correto. O critério primeiro para essa distinção é o que insisti tanto até aqui: a preservação da vida de todas as pessoas, especialmente as mais vulneráveis.”
Lembrado de que a CNBB já se posicionou contra projetos de exploração de terras indígenas defendidos pelo governo e que entidades católicas, como o Cimi e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), dirigidas por bispos, têm uma atuação associada ao campo progressista, o secretário-geral disse que “os organismos citados, como o CIMI e a CPT, têm bispos na direção, mas também possuem em suas equipes leigos e leigas com altíssima formação, além de indígenas e sem-terra, respectivamente”.
“A fé diz respeito à vida toda, inclusive às dimensões social, econômica e política. Cabe, dentre outros, a esses organismos, que conhecem bem a realidade, atuar nos âmbitos respectivos. Isso, algumas vezes, é uma atuação política. Não é, contudo, partidária”, distingue.
Dom Joel Portella afirma que muitos padres e bispos estão com coronavírus no Brasil, embora não tenha os números. Ele relata que o papa Francisco tem orientado a se estar junto com as pessoas sem deixar de seguir as orientações sanitárias. “Cautela, sim. Omissão, não. A diferença está na criatividade. E isso tem acontecido”, diz, ao citar diversas maneiras que a Igreja tem utilizado para chegar aos fiéis, como conversas pelo portão e visitas a doentes em hospitais. “Nada substitui o encontro presencial. Mas é interessante observar um fenômeno novo. Já faz um bom tempo que existem as missas transmitidas pelas TVs católicas. O fato novo é que agora, através do Facebook, por exemplo, as paróquias estão elas mesmas fazendo suas transmissões. É uma dimensão mais próxima. As pessoas podem sentir a sua comunidade indo até ela”, diz. O bispo lembra ainda o caso de padres que estão atendendo confissões por modelo de “drive-thru”, semelhante ao qual clientes de redes de fast food recebem o pedido sem sair de seu automóvel.
O religioso afirma que na Itália, um dos países mais atingidos pela covid-19, 50 padres já morreram em decorrência da doença. “Nossa função é estar com as pessoas. É para isso que optamos pelo sacerdócio. Se podemos comparar a atual pandemia a uma guerra, o padre e o bispo são os capelães militares”, diz. Para dom Joel a pandemia tem colocado todos “numa espécie de letargia, perplexidade” e o perigo é passar desse estado “para a desesperança, a depressão”. O dirigente da CNBB afirma que é preciso que um mundo novo surja a partir de agora e compara a pandemia ao ataque dos terroristas da Al Qaeda aos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001. “O mundo se assustou com o 11 de setembro. Ali surgiu uma mentalidade – consciente ou não; eu não sei – de que estamos “dormindo com o inimigo”. O mundo experimentou medo e se tornou medroso. Agora, o coronavírus marcou o mundo com uma força, acho, maior que o 11 de setembro. Pois a agressão não foi num lugar específico. Ela está no mundo todo”, analisa.
Além disso, argumenta dom Joel, a pandemia do novo coronavírus tem uma característica “diretamente oposta ao 11 de setembro”. Em lugar de “separar, gerar posturas de repulsa”, tem, ao contrário, feito as pessoas desejarem estar juntas. “O grande desafio não é politizar a pandemia mas, indo mais profundo, refletir sobre o sentido que tudo isso tem para nós. Esse nós nem é apenas o Brasil. É o mundo todo. O coronavírus é um vírus da globalização. Os questionamentos e, mais ainda, as respostas precisam ser encontradas por todos”, acredita.