Militares veem “guerra mundial” por equipamentos contra vírus

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Foto: Felipe Rau/Estadão

A disputa mundial por equipamentos de proteção individual e por respiradores artificiais levará os países à revisão de suas políticas industriais e das cadeias logísticas depois da crise. Deve provocar também a criação e a manutenção de linhas de produção de insumos e de máquinas necessárias – hoje tornadas estratégicas – para a Defesa Biológica das nações e para a proteção das populações expostas ao surgimento de novas pandemias, como a da covid-19.

“Não só o multilateralismo, como a logística mundial vai mudar. Os países serão forçados a dominar toda a cadeia de suprimentos para responder com autonomia às crises”, afirmou um general à coluna.”Essa é a nossa 3ª Guerra Mundial”, completou. As discussões sobre o pós-pandemia ultrapassaram os militares especializados na defesa nuclear, química e biológica do Exército e chegaram aos que traçam cenários nos documentos do Centro de Estudos Estratégicos do Estado-Maior (CEEEx) e do Observatório da Praia Vermelha.

Em um texto recente, o CEEEx começou a moldar caminhos para a saída do isolamento horizontal em que o País entrou com o início da pandemia a fim de iniciar uma fase, a da retomada da economia. A mesma discussão ocupou nos últimos dias os governos da Itália e da França, que determinaram quarentenas mais rígidas do que a brasileira para as suas populações – a partir de hoje ninguém mais pode sair às ruas da Lombardia, no norte da Itália, sem usar máscara. Mas mesmo esses países dependem do desenrolar da guerra comercial em torno do combate do coronavírus para acabar aos poucos com o isolamento.

Sem testes, sem equipamentos e sem proteção não há como retomar a economia com segurança dizem os estudos, inclusive o do Exército. Mesmo que a reabertura seja urgente para trabalhadores informais e pequenos e médios comerciantes, poucos no País estariam dispostos à roleta-russa de uma volta à normalidade abrupta. Primeiro, porque ela significaria a ruptura da coesão social. Depois porque o custo em vidas – e entre elas as de parentes e conhecidos – pode ser alto demais. Trata-se de um debate ainda nebuloso e contaminado demais pelos arruaças e conflitos promovidos, principalmente, pelo presidente Jair Bolsonaro e seu filhos.

Enfrentar a situação atual levará os militares a propor um novo tipo de desenvolvimento da economia do País, como os jovens turcos fizeram nos anos 1920 e depois o general Pedro Aurélio de Góes Monteiro fez nos anos 1930? Vão lutar contra a desindustrialização, buscando manter e fomentar indústrias estratégicas para a defesa? Quem vai aceitar ficar nas mãos da produção chinesa ou americana para enfrentar uma nova ameaça?

Em 1953, o Exército criou sua Companhia Escola de Guerra Química. Banidas dos campos de batalha – as armas químicas e biológicas – eram então ameaça menos temida do que as nucleares. Americanos e russos competiam pela bomba de hidrogênio mais poderosa, enquanto os franceses e ingleses começavam a desenvolvê-la.

Nos anos 1960, o general francês André Beaufre desenvolveu seu conceito de dissuasão nuclear. Nele, a preparação para a guerra seria mais importante do o engajamento, diante da impossibilidade de se vencer um conflito pelo fato de ele levar à destruição completa de quem nele se envolvesse. Vivia-se o que muitos chamaram de “equilíbrio do terror”. No Brasil, essa guerra era “distante e delirante”, conforme contava o general Octavio Costa. Mesmo assim, uma geração de brasileiros cresceu debaixo da ameaça nuclear, esconjurada do horizonte imediato pelo fim da Guerra Fria. A covid-19 nós fez reencontrar o medo.

“Em uma guerra convencional é possível prever baixas. Mas você sabe onde está a linha de contato com o inimigo. O mesmo vale para uma guerra química ou para o uso tático de armas nucleares. Tudo muda com a ameaça biológica. O vírus é um inimigo invisível. Não sabemos onde está e como evitá-lo. Nessa guerra, não há teatro de operações nem zona de interior. As mortes nesse conflito não são aceitáveis. Não se pode desprezá-las”, disse o general. Não há neutralidade possível para os países – no domingo, dia 5, a Suíça contava 21,1 mil casos da doença e 705 mortes.

Dias antes, o presidente francês, Emmanuel Macron, prometeu “refletir sobre a dependência” de equipamentos chineses na crise sanitária. Ao jornal Le Monde, o governador Valérie Pécresse, que preside a região Île-de-France, disse ter encomendado milhares de máscaras na China no dia 20 de março. Sem notícia sobre o carregamento, descobriu que ele fora entregue a outro comprador, que pagou mais caro. “Não sabemos quem fez isso; falam dos americanos, mas é difícil provar.” Por sua vez, a Suécia denunciou a França por julgar inaceitáveis as restrições impostas por Macron à exportação de equipamentos médicos. Estocolmo julga a situação “séria”.

Deve-se, então, repetir aqui a pergunta feita por Raymond Aron, em Paz e Guerra Entre as Nações, mas em outros termos: a corrida por EPIs e respiradores será causa de conflito político ou, ao contrário, é o conflito político entre os blocos e países que vai motivar a corrida pelos equipamentos? A busca por eles resultará do desejo de segurança e força e simbolizará o que Aron chamou de “dialética da hostilidade em tempos de paz”. Será “a forma não belicosa da escalada” e pode agravar a insegurança entre os estados rivais.

Assim como na corrida armamentista, cada um se arma porque o outro se armou também. Nenhum Estado pode pôr fim a esse processo. Importam aqui não as intenções das nações, mas as suspeitas que suas ações despertam entre americanos, chineses e europeus. Nenhum dirigente nacional poderá deixar de lado a necessidade de uma política de defesa biológica. Todos terão de prestar contas sobre o que estão fazendo para proteger seus povos. E isso vale tanto para Bolsonaro quanto para Donald Trump.

A caça de equipamentos deflagrada pelo governo americano – e denunciada por alemães, franceses e brasileiros – tornou dramático o slogan de Trump: America First. Aron acreditava que o progresso técnico talvez estabilizasse a disputa atômica entre as nações. Pode ser que surja algum novo equilíbrio após a crise da covid-19. Mas é bom lembrar a advertência do pensador francês: “Para se chegar ao equilíbrio, não se deve contar com os diplomatas.”

Estadão