O próprio MPF critica Aras por acobertar Bolsonaro
Foto: Mateus Bonomi/AGIF
O procurador-geral da República, Augusto Aras, tem se oposto a tomar medidas contra o presidente Jair Bolsonaro diante das orientações dele à população que contrariam recomendações do Ministério da Saúde no enfrentamento à Covid-19. Em outra frente, foca iniciativas para direcionar recursos obtidos em ações judiciais e acordos com investigados ao combate à doença.
Provocado em mais de uma oportunidade, o chefe do MPF (Ministério Público Federal) arquivou pedidos de providências contra o mandatário, o que tem gerado acusações de possível omissão dentro da própria PGR (Procuradoria-Geral da República).
Aras diz que não é papel do órgão entrar em disputas político-partidárias e que a prioridade agora são as gestões para levantar cerca de R$ 2,5 bilhões para a Saúde.
A pedido dele, o STF (Supremo Tribunal Federal) autorizou que fosse destinado à pasta R$ 1,6 bilhão proveniente de um acordo da Petrobras com autoridades americanas, o chamado fundo da Lava Jato.
Segundo o ministério, desse montante, R$ 1 bilhão já foi incluído em seu orçamento. Outros R$ 800 milhões terão de ser pagos pelo empresário Eike Batista, que fechou colaboração com a PGR, sendo R$ 116 milhões agora e o restante ao longo de quatro anos.
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Entre outras verbas, também se busca carrear para o ministério os R$ 51 milhões apreendidos num bunker em Salvador atribuído ao ex-ministro Geddel Vieira Lima (MDB-BA), o que depende de autorização judicial.
Apesar dos esforços para capitalizar o governo, a condução dos casos envolvendo Bolsonaro tem sido fonte de críticas e de embates internos de Aras com seus pares.
Em 26 de março, um grupo de subprocuradores-gerais da República, coordenadores de câmaras temáticas da PGR, requereu a ele que recomendasse ao presidente que a implementação de políticas de saúde e a veiculação de pronunciamentos a respeito do coronavírus passassem a ser feitos em sintonia com as indicações das autoridades sanitárias.
Foi uma reação ao discurso de Bolsonaro em cadeia de rádio e TV, dois dias antes, no qual refutou a necessidade de isolamento social e minimizou as consequências da doença. Para o grupo de subprocuradores, as falas desautorizaram as medidas de saúde em curso.
Aras não levou o caso adiante. Em nota, afirmou que o MPF tem o papel de cooperar com as instituições, atuando para arrefecer polarizações e buscar soluções à crise da Covid-19.
Reclamou que o documento dos subprocuradores foi vazado à imprensa antes de chegar ao seu gabinete e que a finalidade do texto era a de “manifestar preocupação pessoal com políticas de governo”.
O procurador-geral disse que não haveria instrumentos legais para efetivar a recomendação solicitada, caso o presidente se negasse a segui-la. “Os chefes do Poder Executivo detêm liberdade de expressão para se posicionar sobre assuntos considerados relevantes para a sociedade, e não subordinam suas opiniões a organismos externos”, diz a nota.
Em outra oportunidade, subprocuradores pediram a Aras que ajuizasse no STF uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) contra a campanha “O Brasil não pode parar”, lançada pela Presidência após Bolsonaro incitar os brasileiros a saírem às ruas, e contra o decreto que classificou lotéricas e igrejas como serviços essenciais.
O chefe da PGR discordou, argumentando que a arguição deve ser usada para preservar a Constituição “na falta de outro meio eficaz”. Destacou que uma ação com pedido semelhante, da Procuradoria da República no Rio de Janeiro, estava em curso na Justiça Federal em primeira instância. Diante disso, remeteu a representação dos colegas ao MPF naquele estado.
Aras teve posição coincidente com a do governo federal em questão que gerou embates com gestores locais. Em parecer enviado ao Supremo, pediu que uma liminar suspendesse medidas de interdição de transportes adotadas por alguns governadores e prefeitos. Justificou que elas poderiam gerar desabastecimento e prejudicar o tráfego de pacientes em busca de tratamento e remédios.
Os bloqueios foram duramente criticados por Bolsonaro, que alegou invasão da competência federal pelas outras esferas de governo.
Outra vitória do presidente na PGR se deu na última terça (7), quando o órgão remeteu ao ministro do Supremo Marco Aurélio Mello seu entendimento sobre sete representações criminais contra ele.
Elas pleiteavam a abertura de investigação contra o mandatário por, supostamente, infringir em seus discursos e andanças “determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”, crime previsto no Código Penal.
Designado por Aras para atuar em casos dessa natureza no Supremo, o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, opinou contra o prosseguimento dos casos.
Para integrantes da PGR, o procurador-geral tem se equilibrado entre manter um certo alinhamento com Bolsonaro —que o indicou mesmo ele estando fora da lista tríplice definida em eleição dos integrantes do Ministério Público— e dar respaldo ao ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, cujas recomendações seguem em linha oposta à do presidente.
No último dia 2, Aras se reuniu com o ministro e fechou um acordo que permite o repasse de informações técnicas da pasta ao gabinete criado pela PGR para acompanhar a epidemia e definir ações (Giac). Indicou, com isso, que a instituição se guiará pelos dados levantados pelas autoridades sanitárias.
Um dos objetivos do pacto é evitar que procuradores nos estados tomem medidas no âmbito regional sem observar o problema no país como um todo.
Professora da FGV Direito São Paulo, Eloísa Machado de Almeida afirma que a atuação de Aras com relação a Bolsonaro não é surpreendente porque segue a linha adotada antes da pandemia.
Ela lembra que o atual PGR entrou com apenas uma ação no Supremo contra ato do presidente e que, mesmo assim, não foi para resguardar um direito de toda a população, mas só da instituição que comanda.
“Foi a impugnação de um trecho de uma medida provisória que alterou as competências do Ministério Público do Trabalho [MPT]”, diz, em referência à MP do Emprego Verde e Amarelo, no ponto que limitou as competências do MPT para firmar termos de ajustamento de conduta.
Para a professora, a marca da atuação de Aras durante a crise é a omissão. “Talvez o principal fator de destaque seja sua inação.”
“Quando provocado a estabelecer limites no que se refere à incitação à quebra de quarentena, o PGR amenizou a situação dizendo que as falas do presidente, inclusive a campanha publicitária ‘O Brasil não pode parar’, são questões de liberdade de expressão”, avalia.
Eloísa Machado afirma que a atuação de Aras vai na contramão até das decisões do STF. “Além de ser uma interpretação absolutamente torta dos deveres presidenciais e constitucionais, também viola decisão explícita do ministro Luís Roberto Barroso”, ressalta.
Ao decidir sobre a campanha, Barroso “disse que não há direito à opinião do presidente nesse ponto porque não há sequer vias alternativas com respaldo científico”, afirma ela.
A professora sustenta que a PGR poderia estar atuando, inclusive, em relação às afirmações do chefe do Executivo. Segundo ela, há medidas legais que alcançam os atos não oficiais.
“Não é possível ignorar uma série de comandos nas redes sociais, que representam para grande parte da população um encorajamento de seguir uma medida, ainda mais vindo da autoridade máxima do país. Mesmo que não estejamos falando de atos concretos, eles têm efeitos concretos na população, e o direito é capaz de lidar com isso. A figura da incitação está aí justamente para isso.”
Questionado sobre as críticas, o procurador-geral disse à Folha que a PGR “tem buscado resultados em iniciativas concretas para enfrentar a pandemia e ajudar a salvar vidas, sem participar de disputas político-partidárias e sem buscar protagonismo político no meio de uma pandemia”.
“A PGR não é casa de solução política, mas de legalidade e de análises técnicas e jurídicas fundamentadas na Constituição e nas leis. Para afastar um presidente é preciso ir ao Congresso”, afirmou.
Aras argumentou ser necessário separar as figuras do Estado e do governo. “O Estado brasileiro está funcionando com profissionais de diversas áreas, atuando dia e noite no enfrentamento da Covid-19. O governo, representado pelo presidente, assim como parlamentares, tem liberdade de expressão e goza de certas imunidades.”
Segundo Aras, eventuais atos administrativos que contrariem as orientações técnicas, contudo, podem ser passíveis de análise judicial.
O chefe do MPF afirmou que a obtenção de recursos é a prioridade durante a pandemia. E que tomou providências diante da “escassez de recursos para aquisição de EPIs [equipamentos de proteção individual], insumos e equipamentos de toda a natureza para combate à Covid-19”.
“Fiz recomendação para que todos os membros procurassem localizar, arrecadar e dirigir a remessa desses valores aos órgãos de saúde pública”, informou o PGR.
Ele ressaltou que “há bilhões [de reais] à disposição do Poder Judiciário, do Ministério Público, resultantes de multas, acordos de leniência, colaborações premiadas, em todos os ramos do MP brasileiro”.