Isolamento frouxo mata geral no Rio
Foto: Herculano Barreto Filho/UOL
Levantamento feito pelo UOL aponta para uma menor adesão à quarentena na cidade do Rio, com um efeito colateral segundo especialistas: o aumento das mortes por covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, agravando o caos no sistema de saúde.
Entre 26 de abril e 2 de maio, a capital fluminense teve, em média, 51,8% de isolamento social —queda de oito pontos percentuais em comparação à semana anterior. No mesmo período, a cidade registrou aumento significativo no total de mortes (64,3%).
Em meio a esse cenário, a rede pública está à beira do colapso. Na capital, 98% das vagas de UTI estão ocupadas e 315 pacientes com covid-19 —de unidades hospitalares federais, estaduais e municipais— na fila da regulação aguardando transferência para leito de UTI.
Na rede estadual, só há vagas para pacientes com covid-19 no Hospital de Campanha Lagoa-Barra, no Leblon, e no Hospital Regional Zilda Arns, em Volta Redonda, a 130 km da capital. O estado já contabiliza 1.065 mortes e 11.721 pessoas infectadas.
Para comparar o impacto do afrouxamento da quarentena no aumento nos índices de mortalidade, o UOL teve acesso a informações de deslocamento de mais de 60 milhões de dispositivos móveis em todo o país, que integram o banco de dados da In Loco, empresa especializada em geolocalização. Essas informações são repassadas aos governos de 15 estados, incluindo o Rio.
Em um intervalo de três semanas —entre 12 de abril e 2 de maio—, o isolamento social na cidade do Rio ficou abaixo dos 50% em nove ocasiões. Esse índice foi apontado hoje (4) por João Doria (PSDB), governador de São Paulo, como o mínimo para flexibilizar as regras da quarentena nos municípios do estado paulista.
Segundo Luciano Melo, cientista de dados da In Loco, o afrouxamento na quarentena registrado entre 26 de abril e o último sábado (2) terá um impacto no aumento no número de casos e de mortes no Rio nos próximos dias.
Existe uma correlação entre o afrouxamento e a possível aparição de novos casos. O efeito do que está acontecendo hoje ocorrerá daqui a 15 a 20 dias, com aumento de pessoas infectadas e mortes
Luciano Melo, cientista de dados da In Loco
O pesquisador diz que houve uma menor adesão ao isolamento social em todo o país nos últimos dias. “As primeiras semanas de isolamento foram muito efetivas, com índice de até 70%, que é considerado o ideal. Nos últimos dias, houve uma queda gradual”, analisa.
Afrouxamento precipitado, dizem especialistas
O pneumologista Jorge Pio, da comissão de tuberculose da Sociedade de Pneumologia e Tisiologia do Rio, prevê um cenário de caos, agravado pelo afrouxamento da quarentena e pela lotação dos hospitais. Para ele, houve precipitação por parte da população, que passou a sair de casa com mais frequência.
“Ainda não chegamos a uma estabilização do coronavírus. Só seria possível pensar em medidas de afrouxamento depois que esses índices diminuíssem. É melhor esperar do que antecipar o crescimento da pandemia, com mais casos e mortes”, argumenta.
O pneumologista Hermano Castro, diretor da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, concorda.
“O afrouxamento só deve ser pensado mais para frente. Ainda nem chegamos no pico da pandemia. Os hospitais não estão preparados para atender toda essa população que está adoecendo. Infelizmente, a calamidade no sistema de saúde vai se intensificar nos próximos dias”, prevê.
Castro defende que o governo implemente políticas sociais para garantir que pessoas em situação de vulnerabilidade social não precisem sair de casa para trabalhar. Com isso, diz ele, seria possível conter a expansão do vírus.
Estamos vivendo a maior calamidade do século, mas as pessoas não estão se dando conta disso. Políticas públicas deveriam ser pensadas para que a população pobre possa ficar em casa. O estado precisa fazer investimentos para que essas pessoas deixem de morrer sem a assistência necessária. Só assim, vamos poder deixar de contar caixões
Hermano Castro, pneumologista da Fiocruz
‘As pessoas não estão levando a sério’
Na última quinta-feira (30), a reportagem foi à UPA (Unidade de Pronto Atendimento) Parque Beira Mar, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, para verificar a rotina de atendimento para pessoas com sintomas de covid-19. Um ambulante oferecia máscaras de proteção no lado de fora, onde quase 50 pessoas aguardavam por atendimento.
O estudante Wesley Leon, 20, aguardava o pai, que só saiu de casa por dois dias para fazer “bico” como pedreiro. Depois, passou a apresentar um quadro de falta de ar e tosse. “As pessoas não estão levando a sério. Só vão respeitar o isolamento quando acontecer alguma coisa com alguém da família delas”, critica.
Na fila por atendimento, o motorista Rafael Pessanha, 22, que estava com dores no corpo, também reclamava do afrouxamento da quarentena. “Vejo as pessoas se abraçando e indo para os bares, beber”, conta. O caminhoneiro Lucio Flavio Mendes, 36, perdeu o paladar e o olfato depois de fazer uma entrega em uma feira, com aglomeração de pessoas. “Eu não estava usando máscara de proteção”, admite.
Procurada pelo UOL, a SES (Secretaria de Estado de Saúde) informou que 363 pessoas com sintomas compatíveis com a covid-19 aguardam por transferência para UTIs. Segundo o governo estadual, a taxa de ocupação da rede é de 74% em leitos de enfermaria e 84% em UTIs. Ao todo, 2.266 pacientes estão internados na rede estadual, informa o governo estadual.
“O próximo hospital de campanha a ser inaugurado será o do Maracanã, que terá 400 leitos, 80 deles de UTI, nos próximos dias. Os demais 1.400 leitos em outros sete hospitais de campanha e uma estrutura modular serão inaugurados de forma gradativa ao longo do mês de maio, de acordo com a evolução da pandemia”, diz a SES, em nota.
A Prefeitura do Rio informou que a rede municipal abriu 616 leitos exclusivos desde o início da pandemia —168 deles são de UTI. Desde a última sexta-feira (1º), foram abertos 138 novos leitos para o tratamento de pacientes com covid-19.
Em toda a rede municipal, há 527 pessoas internadas com suspeita de infecção por coronavírus —129 são pacientes hospitalizados em UTIs. A taxa de ocupação de leitos de UTI para covid-19 na rede SUS é de 98%. Já a taxa de ocupação nos leitos de enfermaria para pacientes com suspeita de covid é de 92%.
Em toda a rede SUS na capital, há 315 pacientes —de unidades hospitalares federais, estaduais e municipais— na fila da regulação aguardando transferência para leito de UTI Covid.