Por que o Brasil está virando epicentro da pandemia

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Foto: Egberto Nogueira/Ímãfotogaleria/VEJA

Infelizmente, cumpriu-se o prognóstico de que o Brasil se tornaria um dos epicentros globais da pandemia. Na última quinta, 7, o país contabilizava cerca de 130 000 contaminados e havia superado a barreira das 9 000 mortes, a sexta maior marca de letalidade do planeta no ranking macabro da Covid-19. Com um governo hesitante e desorganizado no combate à doença, chegamos ao ponto crítico da crise sem conseguir aplicar até agora o único remédio capaz de conter a expansão rápida do coronavírus: o rigoroso isolamento social. Nessa questão, aliás, o Brasil já pode se considerar o campeão mundial da bagunça, tendo na liderança um presidente que nega desde o início o tamanho do problema e, de forma irresponsável, não perde a oportunidade de conclamar a necessidade de as pessoas voltarem às ruas. Depois de um começo promissor em março, a média de respeito à quarentena em território nacional vem caindo ao longo das semanas e, na terça passada, 5, o índice de adesão bateu em 42,4%, segundo dados da Inloco, plataforma de geolocalização que coleta informações de uma base de 60 milhões de celulares (veja quadro na pág. 48). Vale lembrar, o patamar recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para “achatar” a curva da Covid-19 é de 70%. Recorrendo-se a uma metáfora médica, o Brasil é como o paciente que interrompe precocemente o tratamento de antibióticos ao primeiro sinal de melhora, mas depois precisa aumentar a dose para ser curado, o que prolonga o tempo de agonia diante de uma grave enfermidade. Como se não bastasse, o efeito colateral da paralisação estendida nas contas do país é de uma recessão que pode levar a uma queda de quase 4 pontos no PIB em 2020. “Estamos no pior dos mundos: a adesão ao isolamento social é baixa e os negócios estão fechados. Não se têm nem os benefícios de um nem de outro”, afirma o economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central.

Enquanto a maior parte do Brasil ainda caminha no escuro, sem saber quando poderá voltar à normalidade, alguns estados à beira do colapso no sistema de saúde têm sido obrigados a decretar o chamado lockdown, política que bloqueia e limita drasticamente o trânsito de pessoas e veículos e suspende atividades não essenciais, estipulando punições severas para o descumprimento das regras. Desde o fim do mês passado a capital e três cidades do Maranhão estão sob esse regime. Pará e Ceará engrossaram recentemente essa lista. Nos últimos dias, o governo do Rio de Janeiro recebeu um pedido do Ministério Público para que estude a possibilidade de decretar a medida. “Consideramos que a situação é muito grave e a única possibilidade de segurar esse processo é uma radicalização do isolamento, isso é para ontem”, diz o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, que integra o comitê científico fluminense de combate à Covid-19. Amazonas e Pernambuco também dificilmente escaparão do mesmo caminho, pois se encontram com a capacidade hospitalar praticamente esgotada. Em São Paulo, epicentro da pandemia no país, o governo de João Doria (PSDB) decretou o uso obrigatório de máscara a quem sair às ruas (as multas variam de 276 reais a 276 000 reais, além de detenção por um ano), mas ainda não discute chegar ao lockdown. Na capital do estado foram feitos testes durante dois dias com bloqueios parciais de trânsito para desestimular as pessoas a sair às ruas e avalia-se limitar a circulação de ônibus. Na próxima segunda, 11, Doria prometeu anunciar a reabertura da economia em algumas regiões, mas condicionou isso à existência de indicadores satisfatórios de contaminação e de disponibilidade de leitos. Municípios do interior vivem a expectativa, e organizadores de grandes eventos, como a tradicional festa de rodeio de Barretos, realizada anualmente em agosto, aguardavam o sinal do governador para decidir se mantêm ou não o calendário (a estátua de 27 metros de altura de um peão que fica na entrada da arena em Barretos ganhou, na terça 5, uma máscara contra a Covid-19). O problema é que qualquer liberação neste momento envolve uma conta complexa e arriscada. “Não há como prever o pico da doença, o que temos são números concretos que dizem que ela está aumentando a cada semana”, afirma Paulo Lotufo, professor de epidemiologia da USP. “Já passamos a Alemanha e caminhamos para chegar ao mesmo patamar de França e Espanha.”

A maioria dos países que atrasaram a implementação de quarentenas duras enfrentou grandes apuros, a exemplo da Inglaterra. Houve exceções, como a Coreia do Sul, que se tornou exemplo mundial de sucesso no combate à Covid-19 sem a necessidade de decretar o fechamento do comércio. Mas a nação asiática dispunha de três grandes trunfos para bancar essa política: uma bem desenvolvida indústria de biomedicina para produzir testes em massa, tecnologia para rastrear os últimos passos dos doentes e identificar potenciais contaminados e a disciplinada cultura oriental, baseada na valorização do coletivo. Lamentavelmente, não temos nada disso por aqui.

A entrada do Brasil nessa situação intermediária em que todos perdem, e na rota do lockdown, foi pavimentada pelos embates entre um presidente que prega a volta à normalidade, uma maioria de governadores que decretam quarentenas e dezenas de prefeitos que pendem para o relaxamento das medidas. Além, é claro, da falta de educação e informação de brasileiros de todas as faixas de renda. “A ausência de consenso sobre o tema é o nosso principal problema”, diz Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura. Em Portugal, por exemplo, o primeiro-­ministro, António Costa, do Partido Socialista, e o presidente, Marcelo Sousa, social-democrata, falaram a mesma língua a favor do isolamento desde o início da crise. Com cerca de 1 000 mortes e um esforço concentrado da população, o país europeu saiu do estado de emergência no domingo passado e pôs em ação o plano chamado de “desconfinamento gradual”. Detalhe: mesmo com a liberação, as ruas de Lisboa na tarde da quinta 7 continuavam bastante vazias.

Por aqui, um dos maiores sinais da falta de respeito à quarenta vem de quem, em tese, deveria se preocupar com a família e com o próximo: as igrejas evangélicas. Para agradar a esse eleitorado, que hoje representa 22% do total, o presidente Jair Bolsonaro chegou a incluir as igrejas na lista de serviços essenciais, mas a Justiça vetou a medida. Em estados como São Paulo, há apenas uma recomendação para que esses locais fiquem fechados ou realizem cerimônias com 30% de sua capacidade. Resultado: quem põe os pés na sede da Igreja Mundial do Poder de Deus, no centro da capital paulista, por um instante parece ter entrado em um túnel do tempo, de volta à época em que ninguém ouvira falar de Covid-19. No domingo passado, 3, havia cerca de 3 000 pessoas, entre crianças, adolescentes, adultos e muito idosos assistindo ao culto do autodenominado apóstolo Valdemiro Santiago. Para estar ali, era necessário fazer um cadastro e, na entrada, uma obreira passava álcool em gel nas mãos dos fiéis. O assunto coronavírus permeou as quase duas horas de reunião. Ao escutar o testemunho de uma senhora recuperada da doença, Valdemiro disse que “a cura disso aí não é pelo cientista, mas pelo poder de Jesus Cristo”. Seguiram-se muitos aplausos. Para o líder religioso, o vírus é o “Exu Corona”. No templo, ele anuncia também a venda de sementes de feijão milagrosas, capazes de curar a Covid-19. O pastor sugere o valor de 1 000 reais, “mas quem puder pode dar mais”, e pede ao público para comprar várias, “para seus filhos, netos, noras…”. A todo momento, ele usa seu carisma e dom de oratória para minimizar a necessidade de isolamento social e justificar a (injustificável) aglomeração. “Sabia que tem gente enterrando caixão vazio? Isso é coisa do maligno: simular que alguém morra para aterrorizar as pessoas”, praguejou. Valdemiro se referia a uma notícia falsa, propagada pela deputada federal Carla Zambelli (PSL-­SP), de que caixões vazios estariam sendo enterrados no Ceará

No mesmo domingo, em outra igreja evangélica importante, a Renascer, de vestido longo de crepe de seda, cabelo penteado com laquê e maquiagem digna de festa, a bispa Sonia Hernandes comandava a cerimônia na sede paulistana da denominação. Segundo a líder religiosa, a pandemia e a crise econômica não podem ser argumentos para interromper a ida ao templo, tampouco para cessar o pagamento do dízimo. “Quem não entregar, o devorador vai pegar”, pregou ela. Caso a pessoa esteja sem dinheiro, a bispa tem uma saída, repetida ao menos cinco vezes no culto: “Pega emprestado porque vai multiplicar”. Dois obreiros da Renascer ficaram responsáveis por lembrar aos fiéis o uso de máscara. Na entrada, é preciso assinar um termo de compromisso segundo o qual a pessoa está ciente da pandemia e da necessidade de manter 2 metros de distância dos outros presentes. Uma bombeira media a temperatura de todos, mas com um dispositivo nitidamente com problemas — ele registrava 28 graus, temperatura de alguém em óbito há algumas horas. No Templo de Salomão, sede da Universal, de Edir Macedo, há um controle sanitário maior na entrada: funcionários lavam as mãos e aplicam álcool em gel nos fiéis. Macedo tem feito mais cultos, e a preocupação com a queda na arrecadação no momento é evidente. “Dar dízimo é cumprir o dever com Deus”, disse ele no último dia 30, pregando que quem não doa corre o risco de ficar desempregado. O Templo de Salomão tem recebido entre 2 000 e 3 000 pessoas por reunião nos fins de semana.

Indagadas sobre a quantidade de fiéis em suas celebrações, tanto a Mundial quanto a Renascer disseram respeitar a norma de abrir as igrejas com 30% da capacidade. Há, de fato, faixas que impedem que as pessoas se sentem em cadeiras coladas. “Mas não importa, zelar pela vida implica evitar aglomeração”, critica o padre Michelino Roberto, responsável pela Paróquia Nossa Senhora do Brasil, uma das mais importantes de São Paulo. A Igreja Católica baixou uma norma para que não se realizem missas durante a quarentena, gesto seguido por outros líderes religiosos, inclusive protestantes. “A arrecadação de dízimo caiu 90%, mas pouco importa: a prioridade é a saúde e a vida das pessoas”, diz o reverendo Aldo Quintão, da Catedral Anglicana. As igrejas mais agressivas atualmente nos pedidos de arrecadação de dinheiro são as que enfrentam problemas com o caixa. Valdemiro Santiago, por exemplo, descumpriu compromissos com alguns proprietários de imóveis que aluga. Só em abril, mais de dez senhorios entraram com ações contra a Mundial por falta de pagamento de aluguéis.

Não são apenas algumas igrejas que ajudam a deixar o Brasil em uma situação de descompasso com a gravidade que a conjuntura atual exige. No cenário em que a pressão econômica muitas vezes vence a cautela, várias cidades relaxaram a quarentena — e, não por coincidência, tiveram problemas. No primeiro dia de funcionamento depois de o governo de Santa Catarina flexibilizar as medidas de isolamento, um shopping de Blumenau (SC) virou notícia por causa de um vídeo que mostrava consumidores, entre os quais diversos idosos, aglomerando-se para entrar no centro de compras enquanto eram aplaudidos por funcionários ao som de um saxofonista. Quando o comércio foi liberado no estado, em 22 de abril, a cidade tinha 110 casos de Covid-19. Passadas duas semanas, os registros oficiais mais que dobraram. No Rio de Janeiro, o mesmo Wilson Witzel que deve deixar a cargo de prefeitos a decisão sobre o lockdown havia flexibilizado no início de abril a quarentena em trinta municípios até então sem episódios de contaminação. Um mês depois, 22 deles somam 83 casos e cinco mortes pela doença. Em São Paulo, localidades tiveram as medidas de flexibilização revogadas após manifestações do MP ou decisões da Justiça. Foi o que aconteceu em Sorocaba, com cerca de 680 000 habitantes, que havia passado a considerar escritórios de advocacia, salões de beleza e lojas de tecido como atividades essenciais e precisou recuar da resolução após uma decisão dos tribunais. Em Betim (MG), o prefeito também voltou atrás no relaxamento de regras. “No primeiro dia que reabrimos restaurantes, vimos que não se consegue manter o respeito. As pessoas começavam a beber e não queriam sair mais. Os fiscais chegaram a ser hostilizados por cidadãos alterados”, diz o prefeito Vittorio Medioli (Podemos).

Casos de flagrante desrespeito às quarentenas têm ocorrido em todo o país — e em todas classes sociais. No feriado de 1º de maio, houve congestionamento de automóveis na entrada de Búzios (RJ), sofisticado balneário fluminense. O fluxo de carros nas estradas que ligam São Paulo ao litoral também é alto, a ponto de nove prefeitos da Baixada Santista terem enviado um ofício a João Doria para bloquear as rodovias de acesso — o governo negou a medida. Com os casos de fura-quarentena cada vez mais frequentes, policiais ganharam a incumbência de fiscais de festa. No domingo 3, um empresário foi preso após agredir e ofender PMs que pediam a ele que diminuísse o som e interrompesse uma celebração na cobertura de um prédio na Zona Sul de Belo Horizonte. Situação parecida aconteceu em 18 de abril, em Tibau do Sul (RN), onde a polícia chegou, bem na hora do Parabéns, a uma reunião com cerca de setenta pessoas em um clube. O organizador foi detido em flagrante e os convidados fugiram correndo pela rua. “Estamos recebendo quase quarenta denúncias do tipo por dia”, diz o coronel José Pachá, secretário de Segurança Pública de Rondônia, que investiga uma festa de aniversário em Porto Velho em que mais de quarenta pessoas teriam se contaminado.

Às vezes, nem é preciso investigar tanto assim. Alguns, num evidente arroubo de falta de noção, fazem questão de mostrar a farra nas redes sociais. Em Jurerê Internacional, onde estão os condomínios fechados mais caros de Florianópolis, viralizaram vídeos de festas em mansões e lanchas — com sorrisos, copos nas mãos, vários bumbuns à mostra e nada de máscara. Na Riviera de São Lourenço, em Bertioga (SP), reduto de alto padrão no Litoral Norte do estado, houve recentemente um rega-bofe em uma mansão com banda de música ao vivo e Ferraris, Porsches, Lambor­ghinis e Corvettes estacionados em frente à casa. Na parte de baixo da pirâmide social brasileira tem havido outro tipo de aglomeração. São as imensas filas de pessoas em busca do auxílio de 600 reais, diariamente formadas diante de agências da Caixa. Mas o descaso não se dá apenas por necessidade. Nas favelas, centenas de pessoas saem às ruas e se sentam em botequins como se estivéssemos em um grande e interminável período de férias. Desorganização das autoridades, falta de disciplina e educação da população e desespero econômico — eis o resumo da receita que está transformando o Brasil na nova calamidade mundial da Covid-19. Mudar radicalmente essa equação, quanto antes, é fundamental para preservar vidas e fazer o país voltar o mais rápido possível à normalidade.

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