Ex-porta-voz de Lula quer ação supra ideológica contra Bolsonaro
Foto: Edilson Dantas/Agência O Globo
Na frente ampla para conter o presidente Jair Bolsonaro, objetivos eleitorais não podem ser colocados e a articulação precisa ir muito além da esquerda. Para o cientista político André Singer, membro da Comissão Arns, professor da USP e ex-secretário de comunicação no governo Lula, é crucial que os interessados em um impeachment do presidente Bolsonaro se aproximem de setores que se afastaram do bolsonarismo.
“Existe muito ressentimento, mas objetivos mais altos interessam a todos. Neste momento exato o desafio é envolver o presidente da Câmara”, disse, referindo-se ao deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ).
A frente ampla se justifica, na opinião de Singer, pelo fato de ele enxergar a permanência de Bolsonaro no poder como uma ameaça à democracia. Acredita que o Brasil vive uma etapa do que o cientista político Adam Przeworski chama de “autoritarismo furtivo”, que se caracteriza pelo solapamento das instituições por dentro, sem ruptura do Estado de Direito, de maneira lenta.
“Existem núcleos de resistência ao presidente dentro das instituições, mas o fato é que Bolsonaro lentamente vai dissolvendo os contrapoderes. A polêmica sobre a interferência na Polícia Federal mostra isso”, disse. E explicou: no fim de tudo, Bolsonaro conseguiu trocar o superintendente na Polícia Federal, como queria. E sua aproximação com o Centrão abalou a autonomia de ação de Maia.
Para Singer, ao contrário do que aconteceu durante os impeachment de Fernando Collor e Dilma Rousseff, no caso de Bolsonaro o vice-presidente é um elemento complicador. Hamilton Mourão desperta preocupação como alternativa de poder, após a publicação de artigo no jornal “O Estado de S.Paulo” em que criticou todas as frentes que opõem resistência aos planos do presidente. “No caso de Collor e de Dilma não havia ameaça à democracia. Neste caso, não podemos contar com o vice e não devemos”, diz.
Singer interpreta o comportamento de Bolsonaro em meio à crise da pandemia como análogo ao do presidente americano Donald Trump. Ambos estariam buscando se livrar do peso político da depressão econômica provocada pela catástrofe sanitária. Ao romper o diálogo com a classe científica, tentam transferir o ônus da paralisia produtiva para a oposição.
A seguir, os principais tópicos da conversa por videoconferência que Singer concedeu ao Valor:
Sigo a opinião dos especialistas, do isolamento social. Com o vírus começando a se espalhar, é a única solução para a contenção dos danos. No Brasil, o presidente da República assumiu a postura de liderar a campanha contra o isolamento social. Há muita semelhança entre o caso norteamericano e o brasileiro, de uma conduta irracional e contrária à orientação científica.
Tanto Trump quanto Bolsonaro estão tentando se livrar do peso enorme eleitoral que a crise econômica vai ter. Bolsonaro está olhando para 2022. Com a pandemia, estamos diante de uma crise econômica de dimensões enormes e de grandes reflexos político-eleitorais. Bolsonaro tenta se proteger, só que às custas da saúde da população. É o drama do momento.
Teremos que esperar os próximos meses para saber. Os EUA já tem mais de 100 mil mortos, o dobro das mortes da Guerra do Vietnãl. Trump e Bolsonaro estão correndo um risco altíssimo.
Como o Brasil tem uma percentagem grande da população em condições de renda média e baixa, o apelo para que a retomada econômica volte tem muita repercussão. A informalidade pega, no mínimo, metade da força de trabalho. Essas pessoas vivem do que ganham no dia-a-dia e são muito sensíveis a esse tipo de apelo que o presidente está fazendo, pela retomada das atividades econômicas.
Tenho feito análise preliminar dos dados, que deve ser aprofundada. O Datafolha mudou a metodologia de pesquisa, que passou a ser telefônica e a margem de erro cresceu de 2 pontos percentuais para 3 pontos. Em dezembro de 2019, a aprovação do governo na faixa de renda até dois salários mínimos, foi de 22%. Em 27 de abril, pós pandemia, subiu para 30%. Dá a impressão de que houve aumento na faixa onde Bolsonaro sempre foi fraco. Isso pode ter a ver com o auxílio dos R$ 600,00, que, sobretudo em regiões como o Nordeste, é significativo.
Nas duas faixas superiores, que vão de 5 a 10 salários mínimos e mais de 10, o apoio caiu. Na faixa intermediária caiu de 44% para 33%, a maior mudança entre as duas pesquisas. Aqui podem estar se misturando dois fenômenos – resistência à campanha de Bolsonaro contra o isolamento e a saída do ex-ministro Sergio Moro. Há queda entre os de maior renda, onde o apoio caiu de 44% para 40%, sendo que à véspera do primeiro turno, Bolsonaro tinha 55% de apoio entre estes eleitores. Algo está se mexendo, no sentido de perder apoio em cima e ganhar apoio em baixo. Mas os números ainda não caracterizam uma inversão.
A ideia vem de um livro de Adam Przeworski. Trata-se de uma transição lenta da democracia para o autoritarismo, por meio de uma ação conduzida por líderes democraticamente eleitos e que se dá por dentro do Estado de Direito, e não como uma ruptura. É muito diferente dos golpes de Estado em que um certo dia apareciam tanques na rua, é um retrocesso em direção ao autoritarismo. E como é induzido por dentro das brechas das leis, a opinião pública, os movimentos sociais, a sociedade civil e a oposição não percebem bem o que está acontecendo e não conseguem mobilizar a sociedade. Creio que é isso que está ocorrendo no Brasil. O presidente tem um projeto antidemocrático e não faz questão de esconder. Está cumprindo à risca o que prometeu na campanha e tentando alargar o seu poder, o que é, literalmente, a transição para o autoritarismo.
A Constituição criou contrapoderes como o Legislativo e Judiciário. A imprensa é o quarto poder. Este processo de autoritarismo, em todos os países onde ocorre, começa pela diminuição da liberdade de imprensa. Não necessariamente a supressão, e não de uma hora para a outra. Jornalistas são atacados, atemorizados, a imprensa vai sendo desacreditada. Isso explica a campanha que Bolsonaro tem feito para pressionar e desacreditar a imprensa no Brasil.
Um dos melhores exemplos de como a resistência está sendo minada é o episódio da Polícia Federal. Bolsonaro forçou a saída do ministro da Justiça Sergio Moro a um custo político altíssimo para ele. Mas conseguiu e aí tentou nomear um amigo da família para dirigir a PF. O Supremo Tribunal Federal não deixou. O que ele fez? Nomeou o vice deste amigo da família. Ou seja, alguém que iria fazer o que ele queria que fizesse, e já fez, que foi substituir a superintendência do Rio de Janeiro.
Existem núcleos de resistência dentro das instituições a esta tentativa de alargamento do poder Executivo. A decisão do ministro Alexandre Moraes, do STF, de impedir a posse de Alexandre Ramagem na Polícia Federal, indicado por Bolsonaro, faz parte deste processo. Há a resistência dos governadores e prefeitos, no Congresso há outras vozes. O que acontece é que neste momento esta resistência está sendo minada pelo acordo que Bolsonaro fez com o Centrão. Este acordo abalou a atuação do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, peça-chave na resistência até porque dele depende a possibilidade de haver uma continuidade de um pedido de impeachment.
Esta pressão que o presidente exerce com o apoio de militares – o quanto isso unifica as Forças Armadas eu não sei – está enfraquecendo núcleos de resistência nos outros poderes. Surge a preocupação de até onde este autoritarismo furtivo vai caminhar. O presidente da Câmara e o do Senado Davi Alcolumbre (DEM-AP) têm tido um comportamento tíbio diante das evidentes agressões à Constituição que o presidente tem realizado.
Pesquisas mostram que pouco mais de 20% do eleitorado responde a favor da ditadura no Brasil. Segundo o Datafolha, 62% da população diz que a democracia é sempre o melhor regime. No plano popular, ainda não está se fortalecendo este projeto. No plano institucional, o presidente está muito isolado, a não ser pelas Forças Armadas, que são um grande mistério.
Bolsonaro tem estilo de política particular. É um homem muito radical e audaz. Toda vez que se enfraquece, dobra a aposta, e faz apostas de alto risco. A sociedade e as instituições, incluindo partidos políticos, precisam tomar consciência do perigo e por um paradeiro a isso. Daqui a pouco será tarde demais. Não é um perigo menor. O apoio popular que ele parece manter, um terço do eleitorado, não é a maioria do pais. A maioria quer a democracia. E a Constituição dá os instrumentos legais para se afastar um chefe do Executivo que ameaça a democracia.
O artigo que o vice-presidente Hamilton Mourão publicou no jornal “O Estado de S. Paulo” é gravíssimo. Não só endossa a política desumana, irracional e criminosa do governo em relação ao coronavírus, como acusa todas as outras instituições – Congresso, Judiciário, imprensa, governadores – de estarem atrapalhando o Executivo. É da maior gravidade que um general da reserva, vice-presidente da República, tenha escrito isso. Precisamos nos mobilizar para deter esse autoritarismo furtivo porque ele está em curso. O que está em jogo é muita coisa. Reconheço que é uma situação difícil, mas não vejo outra coisa a fazer. Não fazer isso significaria não fazer nada.
Falando da oposição, creio que está havendo um movimento no sentido de formação de uma frente. No 1° de maio, embora virtualmente, estavam no mesmo palanque os ex-presidentes Lula e Fernando Henrique. Isso representa um elemento importante no sentido da frente, que é para salvar a democracia brasileira. Não é eleitoral e tem que ser muito ampla. Existe muito ressentimento entre grupos e partidos, mas acredito que, chegado o momento, haverá compreensão de que há objetivos mais altos e que interessam a todos.
A democracia brasileira funcionou bem nos últimos 30 anos. Houve alternância no poder, eleições honestas, liberdade de expressão e de organização. Então acho que o desejo, a convicção de que isso merece ser preservado, é capaz de superar estas barreiras.
O grande desafio é fazer com que os presidentes da Câmara e do Senado entrem nesta frente, que tem que ser muito ampla e incorporar setores que estão se afastando do bolsonarismo, desde que manifestem convicção democrática. Se quiser realmente construir uma frente para salvar a democracia brasileira, não se pode pedir atestado ideológico de ninguém.
A conjuntura atual não pode ser comparada com os impeachment de Collor e de Dilma. Em nenhum dos dois casos havia qualquer ameaça à democracia. Concordo que o Brasil não pode fazer um impeachment por mandato e não deve. Mas estamos em uma circunstância excepcional.