Cientista político vê militares “prisioneiros” de Bolsonaro
Foto: Agência O Globo
Parte da coalizão que levou o presidente Jair Bolsonaro ao poder, os militares ocupam vários cargos no primeiro escalão, mas não conseguem fazer o governo avançar. Para o professor Christian Edward Cyril Lynch, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), ao contrário do que ocorreu em 1964, desta vez eles entraram como subordinados e têm dificuldades de se desvencilhar do grupo radical e extremista que ladeia a família Bolsonaro. O trabalho dos generais no governo, segundo ele, tem sido enxugar gelo. E o papel do vice-presidente Hamilton Mourão é fundamental na articulação política. Motivo: é o único que não pode ser demitido.
Como avalia a atuação dos militares no governo?
A eleição de Bolsonaro trouxe ao poder uma coalizão conservadora similar à de 1964, reunindo liberais de mercado, conservadores culturalistas e conservadores estatistas. Mas em 1964, os militares eram o núcleo central da coalizão. Hoje é o conservadorismo culturalista , cujo mentor foi Olavo de Carvalho, quem dá o tom do governo Bolsonaro. Trata-se de um feito inédito na história do Brasil.
Por que os militares dão sustentação a Bolsonaro?
É difícil entender. O Exército é o pilar do Estado, porque acaba justamente com o Brasil dos senhores de terra protegidos por milícias. Os militares estão sendo involuntariamente usados por Bolsonaro para a consecução de um plano de desmantelamento das instituições.
O que os levou à dianteira da administração?
Os generais palacianos apoiaram o governo porque achavam que o Brasil precisava de um freio de arrumação. Como Bolsonaro não dispunha de experiência , os militares pensaram que poderiam imprimir certa racionalidade na gestão. Essa expectativa se frustrou devido à hegemonia do núcleo reacionário radical e populista, onde estão os filhos do presidente e a quem ele acredita dever sua eleição, graças à importação e adaptação de técnicas empregadas pelo populismo de Trump nos Estados Unidos.
Quando isso ficou mais claro?
O governo foi caótico até junho do ano passado, quando passou a ter alguma estabilidade e foram aprovadas reformas no Congresso. Mas na virada do ano a situação havia novamente se tornado precária, devido à recusa do presidente a fazer política no Congresso. O núcleo radical optou sempre por um populismo para explorar o ódio do eleitorado contra o sistema político. A expectativa era a de que submeteriam Congresso e Supremo pela intimidação do “povo”, ou seja, a base de extrema-direita. Mas ela não se concretizou. O Congresso ganhou uma autonomia inédita em 30 anos. Em fevereiro o governo já estava paralisado e aí os militares entraram com mais força.
O que os militares pensam das ações de Bolsonaro?
Eles acham que o presidente é “tosco”, mas que tem carisma e pode criar condições para oito anos de um governo de direita. Mas, para isso, é preciso afastá-lo dos extremistas e normalizá-lo. E os Bolsonaro não deixam. Para eles, o importante é explorar a imagem dos generais. Os reacionários não são idiotas. Sabem que no passado sempre foram figurantes no condomínio do poder e não vão entregar a rapadura.
Por que os militares não abandonam Bolsonaro?
A esperança é a última que morre. Houve diversas crises dos dois grupos no governo. Os militares tentam transmitir a impressão de maior moderação e lidar com a apreensão do Alto Comando, que não vê com bons olhos a exploração política pelos Bolsonaro da imagem do Exército. Os generais palacianos e os Bolsonaro estão momentaneamente unidos, hoje, por causa da ameaça de cassação da chapa pelo TSE. Então as diferenças parecem ter se apagado. E os Bolsonaro aproveitam para jogar os militares contra juízes, explorando uma velha rivalidade sobre quem seria o guardião da Constituição.
Quem é o principal militar na articulação do governo?
O vice-presidente Hamilton Mourão, porque é o herdeiro do trono e o único que não pode ser demitido. Muita gente teme que seu eventual governo seja mais autoritário que o de Bolsonaro, mas tenho dúvidas. Ele é mais preparado e já ensaiou discursos moderados, não parece admirador do populismo. E um presidente general não poderá militarizar o governo como Bolsonaro.
Os ministros militares teriam de deixar seus cargos?
Não necessariamente. Mas eles seguem enxugando gelo, tentando viabilizar o governo. Em breve vão se dar conta, se já não deram, que o governo que desejam só será viável sem Bolsonaro e seu núcleo radical, que inviabilizam a racionalidade político-administrativa e solapa a credibilidade da corporação militar, associando-a à pessoa do presidente. Então, será a hora de negociar com parlamentares e juízes uma saída, que passará pelo Mourão.
Eles têm mais força que Bolsonaro?
Sem os militares, o bolsonarismo fica bem desfalcado. Se sua imagem se desacoplar das Forças Armadas, a extrema-direita ficaria reduzida a 10%, 15% dos votos. O Mourão é um homem bem mais preparado e inteligente, e teria a natural ambição de fazer um bom governo, e quem sabe se reeleger. As instituições da República precisam ser reconstruídas, depois do terremoto da Lava-Jato. E Bolsonaro não veio para reconstruir e pacificar, mas para viver do ódio às instituições e explorar o ódio contra elas.