Bolsonaro troca blogueiro pelo Centrão

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Foto: Gabriela Biló / Estadão Conteúdo

Allan dos Santos, dono do site Terça Livre, é um defensor visceral do presidente Jair Bolsonaro. Sua defesa é tão incondicional que não titubeia nem mesmo depois que ele passou a ser investigado e alvo de busca e apreensão nos inquéritos que apuram ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) e a organização de manifestações antidemocráticas. Mas até a devoção mais exaltada tem seus limites — e o centrão parece ser o de Santos. “Tutorial de Brasília: agrade ao centrão. Não critique o divino STF. Deputados são importantes, mesmo sem fazer nada. Esqueça ideologia, pois bom mesmo é ser técnico, tipo (André) Mendonça e Jorge (Oliveira). Discordou disso: você só merece ser alguém com a camisa do Brasil quando precisarem.” A reflexão, destilando ressentimento, foi postada no Twitter em junho. Depois dela, um rosário de queixas de sua autoria se seguiu na arena das redes. Estaria o fiel servo da militância mudando de lado?

Santos criticou o general Eduardo Pazuello, interino do Ministério da Saúde, por ter conversado ao telefone com o ministro Gilmar Mendes, do STF. Diz abertamente que Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, boicota os conservadores. Sugeriu a demissão do ministro da Justiça, André Mendonça, e faz ataques diários à ala militar como um todo, a quem se refere como “tecnocratas” — adjetivo que, em sua concepção, seria pejorativo. O perigo que se avizinha, na visão de Santos, é que seja instaurado um “governo tecnocrata”, que não leve em conta a ideologia. Bolsonaro, neste caso, seria uma espécie de marionete tutelada pelos militares, mas sobretudo por Ramos, que ele diz acreditar ser o grande artífice da entrada do centrão no governo.

Sua fidelidade começou a se abalar quando o ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, foi demitido. Santos foi até Bolsonaro para uma conversa. Munido da boa-fé dos inocentes, disse ao presidente que é possível governar sem dar cargos ao centrão, mantendo apenas o apoio popular e usando esse apoio para pressionar o Congresso. Relatou a pessoas próximas que saiu da conversa com a sensação de que não foi ouvido. A frustração se somou ao sentimento de abandono que experimentou desde que sua casa foi alvo da Polícia Federal. Confidenciou a amigos que não acha que o núcleo jurídico de Bolsonaro esteja interessado em defendê-lo.

Com mais de 360 mil seguidores no Twitter e mais de 1 milhão no YouTube, Santos é conhecido por disseminar notícias comprovadamente falsas. Assim como seu mentor, Olavo de Carvalho, ele tem trabalhado para, em seu site, retratar a pandemia como alarmismo da imprensa. Já disse, por exemplo, que seria necessário fazer autópsia em todos os órgãos para confirmar se alguém morreu devido ao vírus, o que não é verdade. O Terça Livre publicou que o governador de São Paulo está tratando todos os cadáveres como potenciais portadores de Covid-19, o que é falso, e que o governo do Piauí tinha autorizado policiais a entrarem em domicílios particulares sem mandado judicial, o que também é uma afirmação mentirosa.

Aos 36 anos, Santos é uma celebridade da extrema-direita — uma mudança e tanto de perspectiva para um seminarista que abandonou a vida religiosa recentemente, em 2014. Quando tinha 15 anos e ainda morava no Rio de Janeiro, deixou a Igreja Batista evangélica e se voltou ao catolicismo, inspirado pela visita do papa João Paulo II à capital fluminense, em 1997. Por seis anos, foi membro da organização franciscana Toca de Assis, viajando pelo país em missões de filantropia e assistência social. Quem era da Toca no período lembra do jovem como discreto e trabalhador, sem um grande protagonismo na organização. Depois, Santos passou pelo Seminário da Arquidiocese do Rio de Janeiro e estudou filosofia no Seminário Maria Mater Ecclesiae do Brasil, em Itapecerica da Serra, São Paulo. Nessa época, postava vídeos no YouTube tocando canções religiosas. Aparece usando batina, de barba feita, sempre acompanhado de um violão.

Em 2013, viajou para os Estados Unidos, onde fez parte da Fraternidade Sacerdotal de São Pedro. Lá, se aproximou do conservador Michael Voris. Começou a se interessar por jornalismo quando trabalhou no site de Voris, o Church Militant, página radical de direita, conhecida também por disseminar conteúdo falso. No mesmo período, começou um blog em português sobre catolicismo, em que postava textos sobre teologia e filosofia. Já era um blogueiro conservador, mas não entrava em polêmicas. No final de cada postagem, vinha o seguinte apelo: “Ajude a divulgar o blogue: envie para um seminarista ou um sacerdote! Em CRISTO, A Edição”.

Nesse período, teve contato com Olavo de Carvalho. No fim de 2014, voltou ao Brasil e criou o Terça Livre, importando o modelo do Church Militant e de outros sites americanos de extrema-direita. Segundo ele mesmo conta, montou a empresa “porque os comunistas estavam querendo criar os sovietes no Brasil, e o (Eduardo) Cunha conseguiu romper com esse projeto”. Desistiu de ser padre. Segundo o amigo e hoje deputado federal Márcio Labre (PSL-RJ), Santos justifica a decisão dizendo que não aguentaria manter o voto de castidade. De fato, se casou assim que voltou ao Brasil, e hoje já tem três filhos. Da opinião de que, para formar uma família, o melhor é morar em uma cidade do interior, Santos se mudou para Monte Belo do Sul, uma cidade de 2.500 habitantes na serra gaúcha, numa vida bem mais pacata que a de sua cidade natal, Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro.

“COM UM ‘SUPERCRACHÁ’ EM MÃOS, ELE PASSOU A TER ACESSO A ÁREAS DO PALÁCIO EM QUE A IMPRENSA NÃO PODE ENTRAR E ACOMPANHA O PRESIDENTE EM VIAGENS OFICIAIS, AO LADO DA COMITIVA”

Nas redes sociais, passou a mostrar cada vez mais suas bandeiras, como a simpatia pelo monarquismo, a defesa das armas e o antipetismo. Leitor ávido de São Tomás de Aquino, com quem conservadores católicos costumam ter afinidade, deu o nome de Tomás ao primeiro filho. Posa sempre com um cigarro na mão, defendendo o hábito de fumar e emulando o mestre habitante da Virgínia, que não abandona seu cachimbo. Assim como Olavo de Carvalho, Santos acredita não haver relação entre cigarro e câncer. Também não se acanha em dizer que os Beatles foram cooptados pela KGB, polícia secreta russa, para “destruir a moral e a cultura no Ocidente”, entre outras teses de difícil comprovação.

Em 2016, embrenhou-se em movimentos que pediam o impeachment de Dilma Rousseff e se aproximou da então blogueira e hoje deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP). Já com o Movimento Brasil Livre (MBL), também atuante no período, a relação era menos amistosa, a ponto de Santos ter sido acusado de ter cuspido no prato de um colega. “Ele sempre foi um cara reacionário de verdade, completamente louco. O MBL montou um acampamento pelo impeachment, e o Allan ficou louco, disse que aquela ideia era dele. Ele sempre teve muito ciúmes”, disse o deputado estadual Arthur do Val (Patriota-SP), o alvo da hipotética cuspida, que teria ocorrido sobre um prato de esfirras, enquanto o hoje deputado dava uma entrevista à imprensa. “Eu não sei se é verdade até hoje. Mas eu tirei as primeiras esfirras de cima e comi o resto.” Santos sempre negou ter cometido tal insensatez.

Conforme sua ascensão se consolidou, na esteira da posse de Bolsonaro, as acusações contra o blogueiro escalaram de um reacionário disparador de cusparadas a chefe de milícias virtuais. Com um “supercrachá” em mãos, ele passou a ter acesso a áreas do Palácio em que a imprensa não pode entrar e acompanha o presidente em viagens oficiais, ao lado da comitiva. Mudou-se para Brasília, onde vive em uma casa no Lago Sul que funciona também como redação do Terça Livre, cujo aluguel custa R$ 6.600, segundo ele mesmo informou à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) formada no Congresso para investigar a produção de fake news. O deputado Alexandre Frota (PSDB-SP), quando apoiava o governo, chegou a visitar o local.

“É uma casa até com bastante mofo”, diz Márcio Labre. “Tem um estúdio no porão, em cima tem os dormitórios. Tem um menino que cuida da parte de produção técnica, um pauteiro, ele, e acabou. É uma redação improvisada. Ele e mais um ou outro ajudando a apurar fatos. Falam como se fossem integrantes da Ku Klux Klan naquelas ‘superultra’ reuniões para destruir a democracia. Isso tudo é uma piada, não é?”, disse.

O polpudo aluguel e a vida cara de Brasília são bancados pelo quase padre e quase jornalista com os proventos que recebe de suas redes, em especial o YouTube. Um levantamento da consultoria Quaest aponta que, apenas nos últimos três meses, seu canal de vídeos faturou mais de R$ 60 mil — parte desse valor vem de anunciantes do governo. Uma reportagem do jornal O GLOBO mostrou que, entre janeiro de 2017 e julho de 2019, o governo federal publicou anúncios no canal do YouTube de Allan dos Santos por meio do sistema de distribuição de anúncios do Google. Foram 3.490 propagandas da Petrobras e 398 da Eletrobras. Já a Folha de S.Paulo revelou que, durante a campanha da reforma da Previdência, feita pela Secretaria de Comunicação do governo, em 2019, houve 1.447 anúncios no Terça Livre. Trata-se de um direcionamento automático de propaganda contratado por agências de publicidade junto ao Google. Por essa razão, a Secom afirmou que não havia discricionariedade na escolha dos sites. Até essa descoberta, Santos costumava dizer que jamais recebera dinheiro público por meio de seus canais.

Santos é descrito como arrogante por desafetos e como culto e informado pelos que gostam dele. É também célebre pelo temperamento explosivo. Em um evento com deputados do PSL no ano passado, período em que Luciano Bivar, presidente da sigla, estava doente e fazendo um tratamento nos Estados Unidos, Santos teria dito aos presentes que estava tudo arranjado, já que Bivar “iria morrer”, e a sucessão garantiria poder a Bolsonaro dentro do partido, num período de queda de braço entre ele e Bivar. Santos disse a tal frase a quem quisesse ouvir, inclusive para aliados do enfermo. Esse tipo de ofensa não é incomum ao lidar com o blogueiro, segundo seus interlocutores.

“SANTOS MUDOU-SE PARA BRASÍLIA, ONDE VIVE EM UMA CASA NO LAGO SUL QUE FUNCIONA TAMBÉM COMO REDAÇÃO DO TERÇA LIVRE E CUJO ALUGUEL CUSTA R$ 6.600”

Um dos aliados que tenra Assuntos Internacionais, olavista de carteirinha e um dos membros mais atuantes do núcleo ideológico. Recentemente, publicou um desabafo relatando como a “ala ideológica” foi deixada de lado por Bolsonaro. Escreveu que o governo tem permitido “que o discurso político-ideológico que lhe dá sustentação seja enfraquecido” e substituído por “uma forma de neutralismo tecnocrático”, em referência ao atual protagonismo dos militares. Pelas postagens, Martins tenta se compadecer da frustração da militância, mas há quem diga que isso não passa de estratégia para continuar mantendo a horda virtual sob controle, guiando até mesmo o tom da insatisfação.

O deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP), outro expoente da ala ideológica, deixa claro que não se trata de uma crise com o governo. “Não é um atrito, é uma preocupação. Temos de criticar para mostrar que estamos vivos. Nós não temos poder nenhum no governo. Quem está governando é o STF, Rodrigo Maia e Alcolumbre”, disse. “Veja quem está assumindo, as nomeações que estão sendo feitas. Como nós somos base de qualquer jeito, o governo dá mais tempo para atender partidos que eram antagônicos ao presidente, e estão recebendo mais benesses. Essa tem sido a reclamação dos deputados.”

A reportagem entrou em contato com Allan dos Santos por meio de seu cunhado, Rogério Pires, que está lotado como funcionário de tecnologia de informação no gabinete do deputado Márcio Labre. O parlamentar, inclusive, rechaça qualquer insinuação de que teria privilegiado Pires em razão da amizade com Santos. “Não é nepotismo, é o cunhado do cara. Isso é um puritanismo que existe no Brasil. E se fosse, o que tem? R$ 1.100 não dá nem para pagar uma cesta básica”, reclamou o deputado, ao ser questionado por ÉPOCA, referindo-se ao salário do servidor. A entrevista pedida foi negada. Já a avaliação de Santos sobre a imprensa é tão pública quanto seu amor por Bolsonaro. Em uma de suas manifestações mais mercuriais, disse: “Eu quero destruir essa imprensa por completo, quero ficar muito maior do que todos eles. E eu tenho uma listinha de nomes que, quando eu ficar rico, muito rico, quando esses jornalistas vierem mendigar emprego, eu vou negar.”

Época