Médico diz que Cristo não chamaria menina de “assassina”
Foto: Bruna Costa/Esp. DP
“Falta acabar com a hipocrisia. Ter compaixão, tolerância. Trocar o ódio por amor. Se você é religioso e conhece a pessoa de Cristo, sabe que não tem nada a ver com essa figura de ódio. Garanto a você que Cristo nunca chamaria uma menina de dez anos de assassina”. As palavras do médico obstetra Olímpio Moraes mostram sua visão pragmática sobre a polêmica causada por grupos religiosos nesse domingo (16), quando uma criança de dez anos, moradora do Espírito Santo, grávida de um estupro praticado por seu tio, deu entrada no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), no Recife, para fazer a interrupção da gravidez, amparada no que rege a legislação brasileira.
O procedimento realizado na unidade médica coordenada por Olímpio foi concluído na tarde desta segunda (17). Não deu nem 24 horas da estadia da menina no Recife, acompanhada de sua avó e de uma assistente social capixaba: a informação foi vazada na internet e formou-se um tumulto em frente ao hospital. “Quando eu cheguei ao hospital ontem (domingo), por volta das 16h, eu não entendi o que estava acontecendo. Uma deputada, que conheço, me chamou para conversar. Tentei dialogar, mas fui agredido o tempo todo. Nunca pensei que existiria tanto ódio no coração das pessoas”, relembra.
“Acho que a própria sociedade irá julgar essas pessoas (da manifestação). Não vejo necessidade de dar queixa. Elas serão punidas por seu comportamento. Seria um ato de tortura manter a gravidez dessa criança. Enquanto isso, não vejo essas pessoas preocupadas em ir atrás do estuprador. Perseguem a criança, que é a vítima. E ainda por cima chamar uma menina de assassina. A sociedade que julgue, que veja qual lado está fazendo o bem e qual está fazendo o mal”, acrescenta.
O caso da menina ainda está recente na cabeça de Olímpio e ocorre no mesmo mês em que completa 34 anos de medicina, mas é só mais um dos dramas testemunhados por ele em sua carreira. No começo, era contra o aborto. Mas as cenas que passou a testemunhar no trabalho foram mudando sua de opinião. “Eu estudei em colégio de padre. Minha família é toda religiosa. Eu sou fruto desse meio. Mas quando comecei a trabalhar, ver o sofrimento humano, você passa a acreditar mais na ciência”, avalia.
Dentre as histórias que já vivenciou dentro do Cisam, duas específicas marcaram: o estupro de uma policial em 1994; e a gravidez de uma menina de nove anos, que morava no Agreste de Pernambuco e era estuprada pelo padrasto, em 2009 – fato que causou sua excomunhão da Igreja Católica: “Esse talvez teve uma repercussão ainda maior que o ocorrido no domingo, porque a história foi para fora do país. No mundo ocidental, as pessoas não são excomungadas por salvar a vida das pessoas. Mas o arcebispo da época excomungou a equipe do serviço”.
Como esses procedimentos quase sempre ocorrem de forma emergencial, não há como o médico manter contato. Mas os pacientes lembram. “Uma vez chegou uma mulher atrás de mim no hospital. Fui ver o que era e ela só chorava. Não conseguia dizer nada. Chorava e chorava. E me deu uma uma rosa. Depois, conseguiu agradecer. Eu não fazia ideia do que era aquilo e depois soube que foi um dos casos atendidos. São com coisas assim que a gente passa a ter certeza que, como médico, fez a coisa certa”, recorda.
Do seu escritório, há uma vista para a Zona Norte do Recife. “Quem recorre aos serviços do Cisam não são os ricos, e sim essa turma”, diz ele, apontando para os morros e casa simples. “A mortalidade nos abortos diminuiu quando o Cytotec (medicação abortiva) chegou ao Brasil. Mas aí a medicação passou a ser proibida por pressão religiosa e só quem tem acesso hoje são as ricas, por ser material de contrabando. As pobres morrem se submetendo a técnicas antigas, com agulha ou material cortante. Essa barreira hoje só existe para quem é pobre”, aponta.
Segundo o médico, o Cisam atende a uma média de 40 a 50 mulheres vítimas de violência sexual, seja para interrupção da gravidez ou cuidados com infecções sexualmente transmissíveis – de acordo com os parâmetros estabelecidos pela lei. Desde 1996, o local é centro de referência para casos como esses. “Estamos em 2020, mas muitas vezes as mulheres não sabem dos seus direitos. Não sabem o que é um estupro, não sabem a quem recorrer. E há profissionais de saúde que não cumprem a função de dar informação. Informação salva vidas. Só existe cidadania com informação. Se você quer diminuir a quantidade de abortos, não é desse jeito que você vai conseguir evitar isso”, conclui.