Igrejas podem ter lucro, mas têm que cumprir obrigações
Foto: Câmara dos Deputados/Divulgação
As dívidas de contribuições tributárias e previdenciárias de igrejas que poderão ser perdoadas por decisão do Congresso Nacional até outubro têm a cobrança garantida pela Constituição. É o que afirmam advogados tributaristas consultados pelo GLOBO. O debate voltará ao Legislativo nas próximas semanas após Jair Bolsonaro ter vetado trecho de um projeto de lei que acabaria isentando os templos de arcarem com os débitos, orçados em R$ 889 milhões na Dívida Ativa da União. O próprio presidente recomendou, no entando, que os parlamentares derrubem sua decisão.
Entenda abaixo, em quatro pontos explicados pelos juristas, o que está em jogo nessa discussão.
A cobrança às igrejas envolve dívidas previdenciárias (acumuladas até 2015 sobre remunerações de pastores, padres e sacerdotes) e a chamada Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL). Ao contrário do que se pode concluir em uma análise superficial, igrejas têm direito ao lucro, embora precisem observar de que maneira o utilizam. O advogado tributarista Rodrigo Rigo explica:
— Igrejas podem ter lucros sem nenhum problema, até porque precisam pagar suas contas. No entanto, há leis que determinam como esse lucro pode ser utilizado.
O conceito de lucro enquanto o montante de receitas que sobram após o pagamento de despesas não é vedado aos templos religiosos, conforme explica o advogado tributarista Leandro Schuch.
— É positivo que as igrejas tenham uma balança favorável para que elas continuem mantendo suas atividades, em vez de ficar no vermelho. Esse dinheiro pode ser utilizado para pagar despesas, incluindo as remunerações. No entanto, esses resultados não podem ser distribuídos conforme o resultado dos lucros aos associados, tal qual acontece em uma empresa privada — explica Schuch.
O advogado completa ainda que a dívida representa um acúmulo de multas e penalidades aplicadas pela Receita Federal, que aplica a CLSS especialmente a valores das igrejas que não são utilizados para promover as atividades essenciais da fé. Pode ser o caso, por exemplo, da renda proveniente de aluguéis de imóveis que uma igreja consta como proprietária; da venda de produtos; de ingressos para shows e apresentações culturais, entre outras atuações.
Ao analisar o projeto de lei que tramitou no Congresso, Bolsonaro vetou um trecho que isentava as igrejas ao pagamento da CSLL e sancionou outro ponto, responsável por mudar a classificação dos pagamentos direcionados a padres, pastores, ministros, entre outros. Com isso, esses valores não serão mais considerados como remuneração e haverá brecha para que não sejam tributados. O projeto tratava sobre o pagamento de precatórios e ganhou emendas sobre as dívidas de igrejas após atuação do deputado federal David Soares (DEM-SP), filho do missionário R.R. Soares, líder da Igreja Internacional da Graça de Deus.
Na prática, o presidente não endossou o perdão à dívida relativa à CLSS — e que ele ainda quer que seja discutida no Congresso — e abriu caminho para que a tributação previdenciária deixe de ocorrer.
Para defender o perdão da dívida, líderes religosos e políticos defendem frequentemente que a Constituição assegura imunidade aos templos em relação a impostos. A afirmação é verdadeira: o artigo de número 150, em seu inciso IV, impede que a União, os estados e os municípios instituam impostos sobre “templos de qualquer culto”.
No entanto, as contribuições que estão sendo cobradas não são classificadas como impostos. No estudo do Direito Tributário, os impostos representam apenas uma das “espécies” contidas dentro do “gênero” dos tributos. o caso semelhante de contribuições, a contribuição de melhorias, taxas e empréstimos compulsórios. Embora o texto constitucional isente as igrejas dos impostos, elas não estão livres de arcar com as outras espécies de tributos.
A função da imunidade, conforme lembra a advogada tributária Renata Cunha, do escritório Catão & Tocantins Advogados, é garantir que seja cumprido outro artigo da Constituição: o de número cinco, que em seu inciso VI garante não só a liberdade de culto, como a proteção dos templos.
— A imunidade já existente é satisfatória porque garante uma proteção concreta aos templos, garantindo o direito à religião também previsto na Constituição — afirma Renata: — O projeto de lei foge das garantias constitucionais, criando imunidade diante da cobrança de contribuições, cuja cobrança está prevista.
Existem entidades que não precisam pagar a CLSS: são as chamadas entidades de assistência social sem fins lucrativos. Elas têm a garantia constitucional de não serem cobradas, e a sua existênca e certificação é regulamentada pelo Código Tributário Nacional.
Entre os defensores da isenção e anistia às igrejas, há quem se refira a essa garantia como uma prerrogativa dos templos. No entanto, existe uma série de requisitos para que organizações ganhem essa imunidade — entre outras ações, elas precisam assumir e comprovar o compromisso de não distribuírem lucros e utilizarem receitas apenas para suas atividades essenciais dentro do Brasil.
Como igrejas possuem projetos sociais que ajudam a população e contribuem para o bem estar social, a argumentação favorável a elas sustenta que elas não deveriam pagar a CLSS, uma vez que se enquadrariam nas prerrogativas constitucionais das entidades de assistência social. No entanto, o advogado tributarista Rodrigo Rigo, assim como a advogada Renata Cunha, destaca que isso não ocorre de maneira automática e precisaria ser rediscutido por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) no Congresso.
— A maior prova de que a Constituição não contempla as igrejas com essa isenção específica para as contribuições é o veto do presidente — pontua Rigo: — Uma modificação no entendimento atual carece de uma PEC. O projeto de lei foi um clássico jabuti.
Na segunda-feira, ao vetar o perdão à dívida das igrejas, Bolsonaro afirmou, em rede social, que agiu para evitar “um quase certo processo de impeachment”, uma vez que a medida poderia ser compreendida como crime de responsabilidade.
O debate sobre a cobrança às igrejas e templos pode interferir na arrecadação pública do país e, por isso, o presidente relacionou seu veto a artigos da Constituição e das Leis de Diretrizes Orçamentárias e de Responsabilidade Fiscal. A linha de ação foi recomendada pela equipe econômica do governo.
Bolsonaro também afirmou que uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) seria a “solução mais adequada” para a questão, sensível para suas bases parlamentar, no caso da bancada evangélica, e popular, no caso dos fieis. O grupo de deputados e senadores encomendou um parecer técnico para rebater o argumento de Bolsonaro sobre o crime de responsabilidade.
Na opinião do professor Leonardo Costa, da FGV Direito Rio, o veto de Bolsonaro deveria ser mantido pelo Congresso não pelos motivos pontuados pelo presidente, mas sim pelo que a Constituição dispõe quanto à imunidade de templos em relação a impostos e não em relação a contribuições.
— Não pode haver derrubada porque a redação atual da Constituição é clara: a imunidade só se aplica aos impostos — afirma o docente, que é mestre em Direito Econômico e Financeiro pela Harvard Law School: — A decisão de vetar foi pertinente.