Jurista diz que falha coletiva soltou traficante do PCC

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Foto: Daniel Ferreira / Agência O Globo

A soltura de André Oliveira Macedo, 43, o André do Rap, acusado de ser um dos chefes da maior organização criminosa do país, é, para o jurista Gilson Dipp, um erro de todo o sistema penal brasileiro. Ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ex-corregedor nacional de Justiça, Dipp diz que o sistema falhou porque não tem estrutura para acompanhar diuturnamente as prisões preventivas no país. “O juiz não tem, o Ministério Público não tem, a autoridade policial não tem”, diz o ex-magistrado.

Dipp é uma das principais autoridades jurídicas do país quando o assunto é Código Penal. Em 2012, ele entregou ao Senado uma proposta de reforma da legislação que incluía temas controversos, como o aumento da lista de crimes considerados hediondos, facilidade em comprovar a embriaguez ao volante, ampliação das possibilidades de aborto, descriminalização do uso de drogas e questões sobre os crimes cibernéticos. O texto até hoje não foi à votação no Congresso. O anteprojeto foi trabalhado por uma comissão de juristas durante sete meses, tendo sido entregue ao presidente do Senado no dia 27 de junho de 2012. A comissão foi presidida por Gilson Dipp, ministro do Superior Tribunal de Justiça, e relatada por Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, procurador regional da República.

Na última quinta-feira, 15, por nove votos a um, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela manutenção da ordem de prisão do traficante. O único voto contrário foi o de Marco Aurélio Mello, que havia dado decisão liminar na sexta-feira, 9, permitindo a soltura do traficante. O entendimento manteve decisão do presidente da Corte, Luiz Fux, que um dia após a decisão do decano derrubou a decisão provisória do colega. André do Rap está foragido.

O sistema Judiciário brasileiro falhou no caso da soltura do traficante de drogas André Oliveira Macedo?

Eu fui corregedor nacional de Justiça quando o Gilmar foi presidente do CNJ, 2008, 2010. A situação dos presos provisórios era quase de 1/4 das prisões. Ou seja: pessoas que não foram condenadas com prisão preventiva apodrecendo na cadeia, sem que tenha Defensoria Pública. Pobres e pretos, excluídos. O espirito da lei (Anticrime), o artigo é bom. Só que é muito novo. Foi inserido no pacote anticrime sem discussão. A lei em tese é ótima, não pode ficar preso por mais de 90 dias, mas o nosso sistema falhou porque não tem estrutura para acompanhar diuturnamente liberdades e prisões preventivas. O juiz não tem, o Ministério Público não tem, a autoridade policial não tem. No caso concreto do Marco Aurélio, o sistema como um todo falhou, inclusive me parece o próprio ministro. Porque eu não faria uma leitura da letra fria da lei.

A decisão do ministro Marco Aurélio foi precipitada? Caberia uma análise mais detalhada do caso concreto?

Ele diz que processo não tem capa. Mas é um caso de uma lei nova, sendo requerida diretamente ao Supremo Tribunal Federal, não sei se esgotaram todas as instâncias. Sem verificar a concretude do fato, o cara condenado em duas instâncias, a não sei quantos anos, com poder econômico, possibilidade de fuga, etc. O juiz, se pode de ofício examinar a prisão preventiva, ele pode de ofício examinar também aquilo que não deve dar. Por coerência. Peça informação ao MP, por que fez isso? O ministro seguiu a letra fria da lei. Tá errado? Não tá. Mas não é a melhor técnica jurídica. E o Ministério Público utilizou uma lei de direito civil-administrativo para pedir uma suspensão de liminar, quando uma decisão liminar pode ferir a ordem social, financeira. É uma lei para pessoas jurídicas de direito público. Não é penal. Uma lei que, por exemplo, impede o aumento da tarifa energética por exemplo. Chama-se suspensão de liminar. Quem pode pedir é o Estado, a União, os governadores, pessoas de direito público, que se insurgem contra uma liminar que pode abalar a ordem econômica. Não é medida de direito penal. O pedido do Ministério Público, do ponto de vista processual, é um absurdo.

O presidente do STF, Luiz Fux, poderia dar uma decisão revogando a ordem de um colega?

Não, eu acho que não. Mas ele atendeu ao clamor popular. Ele fez o que o Marco Aurélio deveria ter feito antes, examinar o caso concreto. O Ministério Público atuou de forma desesperada, porque foi omisso sim, foi omissa a autoridade policial, o juiz. O Fux sabia que não podia atender a um pedido através dessa via, mas era o que ali estava para em nome da segurança e do clamor social. Eu acho que apesar do remédio inadequado, algum modo teria que sustar, ou por exemplo agora levar ao plenário, para uma interpretação razoável de um artigo de lei que foi feito às pressas, não foi nem discutido (no Congresso Nacional). Tá tudo errado! E até de certa forma foi bom que isso tenha acontecido, porque vamos ter que aplainar o Supremo. O Supremo não pode dar decisões monocráticas inusitadas e também não pode aceitar recursos do MP que não tenham nenhum fundamento processual. O Supremo está errando tanto quanto outros tribunais têm errado.

O senhor acha que caberia uma revisão desse artigo da lei?

O Congresso Nacional sempre pode revisar, modificar a lei. O Judiciário, enquanto isso, pode sim, especialmente o Supremo, dar uma interpretação razoável para que não haja esse vácuo de representação. Naquele embate do pacote anticrime, do Congresso contra Moro, Moro contra Bolsonaro, Bolsonaro contra o Congresso, o Congresso aprovou isso e enfiou aquilo. Utilizou-se um artigo que em tese é bom e necessário para evitar prisões ilegais, não do traficante condenado, mas daquele pobrezinho que está preso lá no interior do Piauí há um, dois anos sem ter uma decisão condenatória. O Congresso pode melhorar a lei e tem que refletir melhor sobre essa correria de aprovar pacote anticrime. Que não foi só do Congresso, o ministro da Justiça não poderia enfiar goela abaixo o pacote, parece que era a única política pública do Brasil.

A lei permite que qualquer juiz revise a prisão de um réu e não apenas o juiz que a decretou?

Não está dito isso de uma forma clara, mas quando se fala o juiz de ofício, eu sempre penso como o juiz da condenação, o juiz de primeiro grau. O juiz originário da causa. É a minha interpretação frente aos termos ali. Está faltando clareza e nunca foi levado isso através dos recursos interpretativos para o STJ e para o Supremo.

Como era a situação que o senhor encontrou nos presídios durante seu período como corregedor nacional de Justiça?

Eu constatei naquela época e me, parece pelo que tenho lido, pelos dados do CNJ e do serviço penitenciário, que a situação de lá não é diferente da de hoje. Um quarto dos presos no Brasil estão presos em presídio sem uma condenação nem de primeiro grau. Estão detidos por prisões preventivas, prisões em flagrantes, omissão da Defensoria Pública, do Ministério Público e do juiz da Execução Penal, que não cuida do caso. É a ineficiência do nosso sistema penal. Não é só juiz, não é só Ministério Público, não é só a Defensoria. Mas a nova lei não foi feita para soltar traficante de 25 anos de cadeia. A intenção era coibir essas prisões dos invisíveis, ou então não usar as prisões preventivas como foram usadas muitas da Lava-Jato, prisão preventiva para ter delação premiada. Então esse foi o espírito do legislador sem pensar nas peculiaridades do nosso sistema penal. A explicação mais lógica nesse momento é essa para mim.

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