Maior especialista eleitoral do país acusa Bolsonaro de crime
Foto: Marilia Lima/CB/D.A Press – 28/11/18
Autoridade das mais reconhecidas em direito eleitoral no país, o jurista Torquato Jardim enxerga com clareza as consequências das investidas do presidente Jair Bolsonaro às eleições de 2022. “Se do discurso inconsequente resultar em ação concreta contra o sistema eleitoral, aí então poderá se configurar uma ou mais hipóteses de crime de responsabilidade”, adverte.
O ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral e ex-ministro da Justiça, Torquato Jardim acredita que a sociedade civil não permitirá que o discurso antidemocrático de Bolsonaro se materialize. “O Congresso Nacional, o STF, a mídia livre, os sindicatos engajados, o empresariado, as instituições da sociedade civil (OAB, ABI, CNBB, UNE, etc.) estão todos alertas e engajados na preservação das liberdades democráticas.”
O jurista lembra que a urna eletrônica já é um modelo de votação auditável. Ele ressalta a verificação ativa adotada por terceiros, como partidos políticos, Ministério Público, OAB e Forças Armadas, além de instituições acadêmicas e de pesquisa. A maior virtude do sistema eletrônico, na avaliação de Jardim, é a chamada “verdade eleitoral”, a maior expressão da democracia. “Voto posto, voto contado. Acabou o peleguismo e o coronelismo. Quem mais confia na urna são os candidatos”, assegura o ministro aposentado do TSE. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Os ataques do presidente ao sistema eleitoral colocam à democracia em risco?
Não creio. O Judiciário Eleitoral tem longa história de gerência dos meios operacionais das eleições e de julgamento dos litígios entre partidos, coligações e candidatos. A par disso, o Congresso Nacional, o STF, a mídia livre, os sindicatos engajados, o empresariado, as instituições da sociedade civil (OAB, ABI, CNBB,UNE, etc.) estão todos alertas e engajados na preservação das liberdades democráticas.
Caberia processá-lo por crime eleitoral contra a democracia?
Há um ponto sutil de grande significado constitucional — enquanto discurso inconsequente, a sociedade apenas o ouvirá sob o manto da liberdade de expressão. Todavia, se do discurso inconsequente resultar incitação à ação ou ação concreta contra o sistema eleitoral, aí então poderá se configurar uma ou mais hipóteses de crime de responsabilidade. Como está no art. 85 da Constituição: “Atos que atentem contra a Constituição, contra o livre exercício do Poder Judiciário [ou] dos direitos políticos, individuais e sociais [ou] da segurança interna do País [ou] o cumprimento das leis”.
O voto impresso representaria um retrocesso?
Sim. Ademais disso, o STF já decidiu duas vezes que o voto impresso é inconstitucional por violar o segredo do voto. Além do que, a segurança da urna eletrônica está fartamente comprovada pelas explicações técnicas do TSE e pela presença ativa de terceiros na fiscalização das operações — além dos partidos políticos, o Ministério Público, a OAB, as Forças Armadas, e tantas outras instituições, particularmente as acadêmicas e as de pesquisa. Para este mesmo fim, a mídia tem tido papel particularmente importante com as matérias didáticas que tem publicado, com toda a sorte de recursos visuais e gráficos explicativos.
A Câmara vai aprovar o voto impresso? O Brasil virou refém do passado?
Não creio. Onze partidos políticos já se pronunciaram formalmente contra. Além do que, quando se acopla uma impressora e um receptáculo de recibos de votos à urna eletrônica, aumenta muito o número de urnas que falham durante a votação. Isto já ficou demonstrado claramente.
Quais os benefícios da urna eletrônica para o processo eleitoral?
A verdade eleitoral — voto posto, voto contado. Acabou o peleguismo e o coronelismo. Quem mais confia na urna são os candidatos. Dois exemplos — dois candidatos ao Senado que perderam eleição; um por 1.500 votos (num colégio de quase 4 milhões de eleitores) e outro por 400 votos (num colégio de mais de 2 milhões). Não contestaram a apuração. Confiaram na urna eletrônica. Importantíssima no tema a palavra do ex-senador, ex-deputado federal e ex-chanceler Aloysio Nunes Ferreira Filho, candidato a vice-presidente em 2014 na chapa derrotada no segundo turno – “Perdemos porque faltou voto”.
Por que apenas Brasil, Butão e Bangladesh usam urnas que não imprimem o voto?
Desconheço a estatística. O direito eleitoral, todavia, e isto afirmo há décadas, é o que menos se presta ao direito comparado. O regime político e o sistema eleitoral de cada país são decorrência das idiossincrasias da história, da sociologia, da ética pública, dos interesses econômicos, financeiros e comerciais, dos choques de personalidade, do papel das Forças Armadas. Disso tudo é que decorre o direito eleitoral. Lembremo-nos: o direito eleitoral é o único direito no qual o redator da norma é o destinatário da norma. Contribuinte não faz direito tributário.
Pode exemplificar?
São muitíssimos os exemplos. Cito apenas dois. Um: o domicílio eleitoral foi introduzido no Código Eleitoral de 1965 pelo presidente da República — Marechal Castelo Branco, para excluir as candidaturas dos generais, coronéis e capitães que não lhe convinham. Dois: definição de inelegibilidade em acórdão do TSE — “é a circunstância de fato ou de direito que uma maioria eventual do Congresso Nacional escolhe, fotograficamente, para afastar alguém ou grupo da próxima eleição”. Nos Estados Unidos, alguns estados exigem do eleitor identidade com foto para o fim não admitido de excluir os negros e os hispânicos. Nem por isso o mundo desqualifica sua democracia.
A nota divulgada pelo Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral (Ibrade), em solidariedade ao presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, terá desdobramentos?
Sempre que necessário. Os signatários são quase todos ex-ministros do próprio TSE. Um deles — Sepúlveda Pertence, o ex-presidente que introduziu o sistema da apuração eletrônica. Outros colegas — magistrados e advogados, comungaram do mesmo engajamento. Somos testemunhas e agentes da impecável história da Justiça Eleitoral, desde a capilaridade das zonas eleitorais na Amazônia até as áreas sociais conturbadas das comunidades urbanas. O trabalho sempre foi, com os meios de cada época, garantir a liberdade do voto e sua contagem real.
Recentemente, o senhor afirmou que o TSE “não deve se preocupar com as fake news, que sempre existiram, mas com a ameaça de golpe institucional feita pelo presidente Bolsonaro”. O que seria esse golpe institucional?
Golpe haverá – tentado ou atual, se o discurso de crítica, protegido pela liberdade de expressão, tornar-se ato de incitação a ações que ponham em risco a integridade do Judiciário Eleitoral, de seus magistrados, dos advogados, dos servidores permanentes e dos convocados e dos membros do Ministério Público. Se posto o discurso apenas na primeira fase — a da crítica, ainda que áspera, o cenário estará contido nos limites da Constituição. Creio que o Executivo — se tanto for necessário, disporá ele próprio de meios de contenção do discurso presidencial.
As fake news não prejudicam gravemente o processo eleitoral?
Sim — e muito. Os juízes e promotores eleitorais terão um trabalho notável na contenção da divulgação do “fake” e na garantia de uma resposta efetivamente compensatória. Velocidade é a chave do processo. Uma resposta que venha em horas chegará tarde. Assim, fica o desafio — como obter o direito de resposta no espaço do ofensor a tempo de conter a consequência danosa? Afora alonga lista de tecnicalidades — a começar pela identificação do provedor e como acessá-lo.
A Justiça Eleitoral deveria tomar medidas em relação às redes sociais? O Facebook e Twitter baniram o ex-presidente dos Estados Unidos, após anos de ataques e mentiras. E no Brasil? Algo deve ser feito?
Caberá à Justiça Eleitoral equilibrar valores e normas constitucionais. À liberdade de expressão política e à busca de mandato eletivo se impõem os mesmos padrões de probidade administrativa e ética republicana. A constitucionalidade do banimento do discurso por empresa privada já está contestada em juízo.
Nos Estados Unidos, seguidores de Donald Trump invadiram o Capitólio por não aceitarem o resultado da eleição. O Brasil corre risco semelhante?
Não creio. Vândalos mascarados, todavia, sempre surgem. É preciso atenção e um bom trabalho de “intelligence”.
O fundo eleitoral representou um avanço para evitar caixa 2 e outras irregularidades no financiamento de campanhas?
Quero crer que sim. Mas concentrou excessivamente o poder no topo da burocracia partidária. Salvo três ou quatro, não há falar em partidos políticos. São grêmios unipessoais ou unifamiliares a fazerem uso do dinheiro público para fins de autopromoção, porquanto evidente a incapacidade de obterem votação expressiva. Quanto menos dinheiro público em campanhas eleitorais, melhor. Doações, somente de pessoas físicas e nos limites da lei. Se não arrecadar, fecha as portas. E com cláusula de barreira — 5% mínimo em metade mais um dos estados e do DF.
Como o direito eleitoral pode contribuir para combater distorções, como baixa representação política de mulheres, negros e índios?
A barreira cultural e psicológica é intransponível. Cotas na lei para vagas de candidatas e verba mínima para publicidade tapam o sol com peneira larga. Prefiro uma emenda constitucional que, para uma transição de cinco legislaturas (vinte anos), reserve 60% das cadeiras de deputados federais, estaduais, distritais e de vereadores para mulheres, negros e índios.
Como vê a perda de tantos brasilienses na pandemia? Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões? Que exemplo no mundo poderia ser usado no Brasil?
Ninguém estava preparado. Mas os governos estavam alertados — Bush e Obama fizeram discursos e anunciaram verbas para pesquisa porque os cientistas já haviam acendido a luz amarela. Mas ficou só no discurso. Lá e em todo o mundo. O que se viu foi uma tragédia de incompetências somadas — cada governo tomou um caminho como se da estrada fossem os donos únicos. Nunca antes na história deste país tantos falaram tanto e fizeram tão pouco — ou quase nada. Por aqui, o governo federal escolheu esconder a verdade científica, donde a inexistência ainda hoje de uma ação nacional coordenada. Nesta tragédia ninguém ensina; os de bom caráter aprendem. A CPI da Covid no Senado pode servir de palco para um grande aprendizado para o futuro — ao menos para não repetirmos os erros. Futuro negado a 600 mil brasileiros.
Como ficam as grandes questões da humanidade no pós-pandemia?
Tudo será repensado. Sobre tudo haverá teses de doutorado; novos cursos universitários de curta duração; ações judiciais de toda sorte contra o poder público; milhões de verbas para pesquisas científicas e outras nem tanto; peças de teatro de arena, musicais com belas trilhas sonoras, filmes de diretores famosos, documentários de cineastas emergentes; algumas medalhas para alguns dos incansáveis e admiráveis profissionais da saúde (estes – sim, cidadãos notáveis); coquetéis de lançamento e autógrafos, prêmios de academia e sindicatos das artes; discursos inflamados de campanha eleitoral. Depois, por aqui, tudo voltará ao normal. Quarta-feira de cinzas. Voltaremos a falar dos desempregados; da inflação dos alimentos; de uma nova CPI; mais um escândalo político de alguma natureza; filas na saúde pública, falta de vagas nas escolas públicas; violência urbana, homofobia; queimadas na Amazônia, invasão de terras indígenas, revisão parcial da lei eleitoral; mais algumas dezenas de emendas constitucionais, mais propostas de reforma tributária ou administrativa ou previdenciária; carnaval e festas juninas.
É possível um projeto suprapartidário para mitigar os efeitos da pandemia nos próximos anos?
Não creio. Não há partidos políticos, nem personalidades, nem um pensamento unificador da nacionalidade para sedimentar tal iniciativa. A sociedade do Twitter e do WhatsApp desconhece o horizonte de longo alcance. Estimo estar equivocado.
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