Bolsonaro governa hoje para um microverso de apoiadores digitais

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Foto: Sergio Lima/AFP

Quase três anos depois de vencer as eleições, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é reprovado por 51% dos brasileiros, segundo pesquisa Datafolha de julho. Mesmo sob uma pandemia que matou centenas de milhares de pessoas, acusações de demora na vacinação, altas nos preços e elevado desemprego, Bolsonaro conserva o apoio de 24% da população, de acordo com o mesmo levantamento.

Para pesquisadores ouvidos pelo UOL, isso acontece porque Bolsonaro conseguiu montar uma rede de apoiadores fiéis e trabalha para manter seus seguidores dispostos a ocupar as redes sociais com os assuntos definidos pelo governo. Para isso, a pauta bolsonarista explora desconfianças, define “inimigos” e se esforça para fazer parecer que há uma mobilização ampla em torno de determinadas causas.

Segundo o cientista político Guilherme Casarões, professor da FGV-SP (Fundação Getulio Vargas em São Paulo), a estratégia do presidente é “fomentar o caos para manter a base unida” e “provocar instabilidade” como método de governo.

De acordo com a antropóloga da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) Letícia Cesarino, que acompanha grupos bolsonaristas no WhatsApp desde 2018, as pautas do presidente devem ser entendidas em um contexto de “estratégia para manter o poder”.

O cardápio de Bolsonaro para consolidar sua base é variado. Inclui o questionamento da gravidade da pandemia de covid-19, a defesa do suposto “tratamento precoce”, ataques a vacinas e ameaças golpistas, entre outros temas que geram divisão na sociedade.

Casarões lembra as declarações do presidente ameaçando as eleições caso não houvesse voto impresso em 2022 (a medida foi rejeitada pela Câmara) ou no sentido de que o artigo 142 da Constituição dá às Forças Armadas um “poder moderador” — o dispositivo não dá esse poder aos militares e esta interpretação já rejeitada pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

Ao longo da pandemia, Bolsonaro vem atacando o Supremo por ter dado autonomia a governadores e prefeitos para adotar medidas de distanciamento social. O presidente ainda promove remédios sem comprovação de eficácia no tratamento da covid-19.

A imprensa também é alvo frequente de Bolsonaro. Só no primeiro semestre deste ano, Bolsonaro fez 87 ataques à imprensa, o que representa aumento de 74% em relação ao mesmo período do ano passado, segundo levantamento da ONG Repórteres Sem Fronteiras.

Já os ataques às urnas eletrônicas estiveram em 192 declarações do presidente desde o início do mandato, sendo que 160 delas foram dadas só de abril em diante, de acordo com levantamento da agência de checagem Aos Fatos.

Isso tudo faz parte de um repertório populista de criação de um inimigo externo que vai fazer de tudo para prejudicar o povo. No caso das urnas, é o TSE [Tribunal Superior Eleitoral], mas ele também fala sempre no Supremo, no PT, Foro de São Paulo, um conjunto cada vez mais amplo de inimigos que não o deixariam governar.”
Guilherme Casarões, professor da FGV-SP

De acordo com a antropóloga Letícia Cesarino, durante a campanha de 2018, os grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro eram compostos por pessoas de variados interesses e que poderiam ser genericamente consideradas “de direita”. Conforme o governo foi se consolidando, esses grupos diminuíram de tamanho e de diversidade.

“Sobraram aquelas pessoas ligadas a um bolsonarismo estrito, que defendem intervenção militar e pautas do tipo”, afirma.

Entre as pessoas que não estão mais nesses grupos, ou pelo menos não são mais ativas no WhatsApp, Cesarino identifica um “bolsonarismo latente”.

“São aquelas pessoas que ainda desconfiam das urnas, da imprensa e da academia, por exemplo, mas que não concordam com as pautas mais radicais. Só que elas podem ser ativadas num contexto eleitoral para serem envolvidas novamente num discurso bolsonarista e levadas a votar nele de novo.”

Na análise da professora, a insistência de Bolsonaro em assuntos superados, como fraudes nas urnas eletrônicas (das quais não há qualquer registro) ou uma suposta ineficácia das vacinas contra a covid-19 serve para manter essa latência sempre no radar.

A grande preocupação é impedir que essas pessoas voltem a um ecossistema normal de informações. A intenção é mantê-las numa baixa frequência, sempre inventando alguma coisa para impedir que elas voltem à esfera normal do debate público”.
Letícia Cesarino, professora da UFSC

Segundo Letícia Cesarino, um fenômeno bastante observado nas redes bolsonaristas é o chamado ‘crowdsourcing’ — termo em inglês usado para se referir, de forma geral, a uma colaboração que envolve uma comunidade em vez de fornecedores ou funcionários.

“Eles jogam muitas informações e veem o que vai pegar ou não conforme a resposta de quem recebe os conteúdos. Até por isso, Bolsonaro nunca se coloca numa posição fixa em relação a nada, para sempre ter essa margem de recuo caso uma pauta não tenha a aderência esperada.”

Ela cita o caso das vacinas contra a covid-19. Em outubro, quando o Instituto Butantan, que fabrica a vacina CoronaVac, começou a negociar a venda do imunizante ao Ministério da Saúde, Bolsonaro disse que “toda e qualquer vacina está descartada”.

“Mas isso não colou”, diz Cesarino. A adesão às vacinas contra a Covid-19 no Brasil é de 94%, um dos índices mais altos do mundo, segundo pesquisa do Datafolha divulgada em julho.

A reação de Bolsonaro foi mudar o discurso para dizer que não compraria vacinas que não tivessem sido aprovadas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), e não que simplesmente não fosse comprar vacinas.

Já com as urnas foi diferente, diz Cesarino. Segundo ela, Bolsonaro se aproveitou do índice de desconfiança no voto eletrônico — 29%, segundo pesquisa de janeiro do Datafolha.

“Ele sabia que ia colar mesmo entre as pessoas que não estão entre seus apoiadores mais radicais. Eles jogam com essa ambiguidade, jogando com pautas que já mexem com a desconfiança das pessoas. Aquela coisa de ‘não custa dar mais transparência’, como se o processo hoje não fosse transparente”, disse a professora.

A escritora Michele Prado, autora do livro “Tempestade Ideológica” (editora Lux), sobre a ascensão da extrema-direita no Brasil e no mundo, afirma que os grupos de apoio ao presidente usam uma tática chamada “astroturfing”: espalhar uma mensagem desenvolvida estrategicamente com a aparência de um movimento natural e espontâneo.

“Uma pessoa lança uma ideia e os outros integrantes desse grupo divulgam em outros grupos de que fazem parte, e assim por diante. Essa mensagem pulveriza muito rápido e fica difícil comprovar de onde veio”, afirma Prado.

Segundo ela, um exemplo do uso desse tipo de tática foi a greve dos caminhoneiros de setembro de 2018. “Os apoiadores de Bolsonaro ficaram enviando conteúdos nos grupos para fazer parecer que era algo do povo e não era, era um projeto político do governo”, diz.

Durante a greve, Bolsonaro disse que apoiava o movimento, mas era contra o bloqueio de estradas. A greve foi encerrada depois de negociações do governo Michel Temer (MDB) e das Forças Armadas com as lideranças sindicais. Em março de 2019, houve novas ameaças de greve, mas lideranças do movimento disseram que não parariam as atividades porque “o pessoal gosta do Bolsonaro”.

Um estudo de junho do ano passado conduzido por pesquisadores da UFABC (Universidade Federal do ABC Paulista), da USP (Universidade de São Paulo) e da FGV indica que esta forma de tentar influenciar a população pode ter repercussões práticas. Segundo a pesquisa, em todas as ocasiões em que Bolsonaro criticou o isolamento social, a taxa de adesão à medida caiu. Mais mortes ocorreram, proporcionalmente, nos municípios onde o presidente foi o mais votado nas eleições de 2018.

Para Michele Prado, são dados que mostram o poder de influência de teorias conspiratórias e desinformação.

“Já existem dados que mostram que a maioria dos que invadiram o Capitólio, nos Estados Unidos, era de pessoas que não faziam parte de milícias ou grupos organizados, eram cidadãos absolutamente comuns que foram levados a acreditar que o país estaria em risco caso Joe Biden [vencedor das eleições de 2020 nos EUA] assumisse o cargo”, afirma. “Daí a gente pode ver como as pessoas podem ser levadas até a cometer atos violentos em nome de uma teoria da conspiração.”

Uol

 

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