Historiadora americana comenta ressurgimento da extrema-direita
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À primeira vista, pode ser difícil encontrar algum fator comum entre a polarização política nos países latino-americanos e europeus, os movimentos populistas nos Estados Unidos, Brasil e na Hungria ou o comportamento dos governos da Venezuela e da Polônia.
No entanto, a jornalista e historiadora americana Anne Applebaum relaciona esses fenômenos como sintomas de um enfraquecimento global da democracia liberal, o sistema de governo que muitos consideravam triunfante apenas alguns anos atrás.
Autora do livro O Crepúsculo da Democracia — Como o Autoritarismo Seduz e as Amizades São Desfeitas em Nome da Política, Applebaum afirma em entrevista à BBC News Mundo (serviço em língua espanhola da BBC) que essa tendência é diferente em termos históricos, mas também não a considera irreversível.
Ela acredita que a pandemia de Covid-19 pode ter enfraquecido alguns governantes, como Jair Bolsonaro, já que a crise mundial de saúde “tem levado algumas pessoas a entender que esse tipo de populismo desenfreado e esses movimentos anticiência, antievidências, antimídia e antifato têm um custo”.
Ela defende que haja um debate maior sobre o papel das mídias sociais nas democracias, sobretudo em países como o Brasil, mas se diz contra censuras e remoções de material.
A saída seria discutir regulações públicas e tornar mais transparente a forma como algoritmos das mídias sociais difundem mensagens.
“Seria muito útil para os países latino-americanos se envolverem mais no debate atual sobre como reformar a Internet e como tornar as mídias sociais mais civilizadas”, diz a autora.
“Existem especialistas muito bons no Brasil com quem conversei, assim como em outras partes do continente, que pensaram muito sobre como as redes sociais podem ser alteradas e reformadas”, acrescenta.
Confira abaixo a entrevista com a autora que vive boa parte do ano na Polónia.
Ela é vencedora do Prémio Pulitzer pelo seu livro Gulag, sobre a história dos campos de concentração soviéticos.
BBC News Mundo: A democracia liberal foi ameaçada de muitas maneiras no passado, por ideologias e movimentos inimigos, como o fascismo ou o comunismo. O que torna o momento atual tão especial em termos históricos?
Anne Applebaum: O que torna o momento atual especial é que as democracias mais antigas e estáveis ??são as que agora estão ameaçadas.
O enfraquecimento da democracia não está acontecendo apenas em lugares que recentemente passaram a ter governos democráticos, mas também em lugares como os EUA, Grã-Bretanha e França, que têm uma longa experiência com a democracia.
A segunda coisa que torna isso diferente é o fato de que um fenômeno semelhante está ocorrendo em tantos países ao mesmo tempo.
Esta não é uma questão de política americana, brasileira, filipina, turca ou húngara. Movimentos e estados de ânimo políticos muito semelhantes podem ser vistos em países que não têm nada a ver uns com os outros.
O que os EUA, a Hungria e as Filipinas têm em comum histórica, política e sociologicamente? No entanto, todos eles sofrem de problemas muito semelhantes. E acho que isso torna esse momento diferente dos anteriores.
BBC: Você vê esse fenômeno, “o declínio da democracia”, como algo irreversível talvez?
Applebaum: Não. O título do livro não é uma previsão; é mais uma questão. Não acho que nada seja irreversível.
Na verdade, acho que um dos erros que cometemos nas últimas décadas foi supor que a própria democracia era irreversível.
Em outras palavras, uma vez que você tinha uma democracia em funcionamento, você não precisava fazer nada demais para mantê-la.
Você podia deixar que políticos profissionais se preocupassem com isso e podia ir fazer qualquer outra coisa, como ganhar dinheiro ou pintar quadros.
Na realidade, nada é inevitável. O declínio da democracia não é inevitável, mas também não é inevitável a sobrevivência da democracia.
Se ela vai diminuir ou sobreviver, isso depende das decisões que tomamos todos os dias.
BBC: No final de seu livro, você diz que “não há solução final” e “nenhum roteiro para uma sociedade melhor”. Mas uma das grandes questões que enfrentamos agora é como as democracias liberais podem enfrentar as teorias da conspiração e o que você chama de “mentiras médias”, usando a definição do historiador Timothy Snyder, sem limitar a liberdade de expressão, sem tornar o remédio pior do que a doença. O que você pensa sobre isso?
Applebaum: Essa é uma das questões mais difíceis que enfrentamos hoje. Esta é uma das explicações por que a democracia está em perigo em tantos lugares: que o espaço da informação é muito mais contestável e frágil do que jamais foi.
Já escrevi sobre isso e acho que as respostas podem estar em algumas formas de regulamentação: não simplesmente censurar ou remover coisas, mas ter regulamentação pública e um maior entendimento de como funcionam os algoritmos que espalham mensagens nas redes sociais e outras plataformas através da Internet.
Além disso, espero que os governos democráticos levem mais a sério a criação de alternativas de serviço público e encontrem novas maneiras de usar a Internet para discussões e debates públicos.
Embora o Facebook, o Twitter, o Google e o YouTube sejam projetados para criar deliberadamente mais raiva, empolgação e debates menos racionais, precisamos de algumas formas de debates públicos projetadas para criar um bom diálogo e um consenso.
Isso é tecnologicamente possível. Ainda não temos um modelo de negócios, mas é uma das coisas que as democracias podem fazer juntas para resolver esse problema.
Acho que é uma das coisas mais difíceis que temos de fazer agora. Você tem razão, é algo muito primordial.
BBC: Você cita a pesquisa da psicóloga política Karen Stenner sobre preconceitos autoritários e diz que as pessoas costumam ser “atraídas por ideias autoritárias porque a complexidade as incomoda”. Você pode explicar isso?
Applebaum: Algumas pessoas preferem que o mundo seja unificado, que todos ao seu redor concordem, que haja uma mensagem única e clara dos líderes de seu país.
Eles ficam incomodados com discussões, debates e trocas de ideias agressivas. E alguns se incomodam com a complexidade e as nuances.
Eles gostariam que seus líderes pudessem oferecer explicações simples sobre o mundo ao seu redor e soluções simples que possam ser endossadas com entusiasmo.
Muitas pessoas não gostam de ouvir que existem respostas múltiplas, que temos que chegar a um acordo com os demais e que isso pode levar tempo.
Então, eles começam a preferir sistemas políticos autoritários e unificados que não lhes dão esse tipo de opção.
BBC: Uma das grandes tendências atuais que você descreve em seu livro é o surgimento de movimentos nacionalistas e de extrema-direita. Você diria que a pandemia reforçou essa tendência até agora ou a enfraqueceu? Alguém poderia argumentar que Donald Trump não teria perdido a eleição do ano passado se não fosse pela pandemia, que também enfraqueceu líderes como Jair Bolsonaro no Brasil…
Applebaum: É uma pergunta muito difícil de responder. Certamente nos primeiros dias da pandemia parecia bastante claro que muitos líderes autoritários iriam tentar usá-lo para ganhar mais poder, para reprimir jornalistas, para reprimir a oposição política. E isso aconteceu em vários países.
Mas é claro que a pandemia também gerou diferentes reações contrárias.
Primeiro, uma espécie de reação antigovernamental e antiestado que vemos em muitos lugares, e também uma demanda por ciência neutra, por saúde pública, por um governo mais inteligente.
Esses desejos se desenvolveram de maneiras diferentes no mundo.
Na verdade, eu discordo, acho que a pandemia de alguma forma ajudou Donald Trump.
Lembre-se de que sua resposta à pandemia foi: “Devemos ignorar isso tudo, devemos seguir em frente, tudo vai ficar bem.”
E temo que muitas pessoas gostaram dessa mensagem de que não deveriam fazer nada em particular, de que não precisavam mudar seu modo de vida.
Então é complicado, não sei se podemos dizer como a pandemia afetou a reeleição de Trump.
Mas é verdade que em alguns países, certamente em algumas partes dos EUA, no Brasil e em outros lugares, a pandemia tem levado algumas pessoas a entender que esse tipo de populismo desenfreado e esses movimentos anticiência, antievidências, antimídia e antifato têm um custo.
É difícil para mim dizer quantas pessoas entenderam isso e quantas reforçaram seu entendimento.
Mas está bem claro que os países que tinham as melhores burocracias de saúde pública e onde havia mais confiança entre o povo e o governo tiveram o melhor desempenho durante a pandemia.
Seja na Alemanha, Coreia do Sul ou Taiwan, esses lugares se saíram melhor do que os EUA e o Brasil, onde os líderes anticientíficos dificultaram muito o combate à pandemia.
BBC: A democracia também está em crise em várias partes da América Latina, onde as instituições são menos fortes do que nos EUA e na Europa. Existe algum conselho ou lição que a região deveria aprender com o que está acontecendo no mundo ocidental?
Applebaum: Na verdade, cheguei à conclusão de que a crise não é tão diferente no Brasil, na Hungria ou nos EUA como se poderia acreditar.
Eles deveriam ser muito diferentes. E deveríamos pensar que as democracias mais novas têm instituições mais fracas. Mas não estou segura disso.
Me parece que a crise tem muito mais a ver com profundas dúvidas sobre a globalização e a economia global, com o surgimento de regimes autoritários em outros lugares.
E então, como já mencionamos, eles têm a ver sobretudo com essa mudança na natureza da informação.
Seria muito útil para os países latino-americanos se envolverem mais no debate atual sobre como reformar a Internet e como tornar as mídias sociais mais civilizadas.
Existem especialistas muito bons no Brasil com quem conversei, assim como em outras partes do continente, que pensaram muito sobre como as redes sociais podem ser alteradas e reformadas.
Para a região, acho que seria muito importante que os parlamentos, presidentes e líderes se envolvessem mais na compreensão de quais são os problemas e na reflexão sobre como a regulamentação poderia funcionar.
Eles têm uma grande influência na Internet em espanhol e português e podem fazer uma grande diferença.
BBC: Você visitou a Venezuela no início de 2020 e diz em seu livro que o país se assemelha “aos antigos Estados marxista-leninistas” e “aos novos regimes nacionalistas” ao mesmo tempo. Por quê?
Applebaum: Hugo Chávez e agora Maduro usam essa linguagem marxista e algumas de suas políticas econômicas envolveram formas muito primitivas de nacionalização e destruição da empresa privada, que guarda semelhança com o passado.
Mas, na realidade, os métodos que eles usaram para controlar a conversa pública na Venezuela e tomar o poder foram muito semelhantes aos usados ??por autocratas nacionalistas em outros lugares, começando por enfrentar a mídia e minar a oposição.
Acima de tudo, existe a ideia de que abaixo de Chávez estão os verdadeiros venezuelanos, e que os oponentes [de Chávez] são de alguma forma falsos, traidores, elites ou forasteiros, e então há permissão para violar a lei, minar o Estado de direito e destruir instituições porque ele tem o apoio da “verdadeira” Venezuela, e não da “falsa” Venezuela — esse tipo de retórica populista é a mesma que pode ser ouvida na Turquia, Rússia ou Hungria.
Nesse sentido, algumas das táticas e técnicas que o regime venezuelano utilizou para chegar ao poder são bastante conhecidas.
No ano passado, eu dei uma aula nos EUA em que comparei o regime venezuelano ao atual governo polonês.
Dado que o regime venezuelano se autodenomina socialista bolivariano contra a Igreja, e uma vez que o partido governante polonês é muito pró-Igreja e muito nacionalista, na superfície eles parecem ser bem diferentes.
Mas se você olhar como eles se comportam e qual é sua atitude em relação às instituições, há muitas semelhanças.
BBC: Mas você vê isso como um exemplo de que não há mais uma distinção na maneira como a extrema-direita ou a extrema-esquerda tendem a governar?
Applebaum: Não generalizo muito porque nem todos os países são iguais. Mas sim, é verdade que a extrema-esquerda e a extrema-direita têm muito em comum.
E também é verdade que, em termos gerais, muitas das antigas divisões entre esquerda e direita são muito menos importantes do que costumavam ser.
O que importa muito mais é a divisão entre quem respeita ou não o Estado de direito, a independência dos tribunais, quem acredita e não acredita na liberdade de expressão, em estar integrado com o resto do mundo e fazer parte da comunidade internacional.
Essas questões são muito mais importantes agora do que muitos dos argumentos tradicionais sobre o tamanho do Estado.
BBC: A retirada das tropas americanas do Afeganistão e a tomada do poder pelo Talebã são outro sinal do declínio da democracia ocidental no mundo?
Applebaum: As circunstâncias são um pouco diferentes. Na realidade, os EUA vêm se retirando lentamente do Afeganistão há anos. A missão da Otan terminou formalmente lá em 2014. Portanto, isso já dura há algum tempo.
Quaisquer que sejam as razões políticas domésticas para a retirada dos EUA e os argumentos sobre se foi prudente ou tolo fazê-lo neste momento, o impacto é que estamos observando em tempo real como um movimento autocrático, tirânico, misógino e violento se impondo sobre uma sociedade que tinha elementos de liberalização, que teve muito mais sucesso do que há 20 anos e criou um espaço de maior liberdade para mulheres e minorias.
Estamos vendo como essa destruição acontece. Então, sim, é uma espécie de golpe psicológico para o mundo democrático, mesmo que obviamente não fosse essa a intenção da retirada.
BBC: Em seu livro, você também cita uma frase do filósofo francês Jean-François Revel, que disse no final de 1973 que o diagnóstico do capitalismo parecia mais com um obituário. E você ressalta que esse mesmo diagnóstico “parece se aplicar ao presente”. Você diria que também há um declínio do capitalismo neste momento?
Applebaum: Depende do que você entende por capitalismo. Não vejo o negócio privado desaparecendo e não vi ninguém criar uma alternativa à economia privada que seja melhor do que as que existem.
É verdade que há muito precisamos de uma reforma de nossas estruturas financeiras internacionais cleptocráticas. As instituições que tornam a lavagem de dinheiro possível nesta forma de capitalismo autocrático e cleptocrático não são realmente capitalismo, é uma espécie de capitalismo estatal que domina tantos países.
Acho que há muito espaço para reformas e há maneiras pelas quais nossos mercados financeiros têm caminhado na direção errada. Mas não vejo que alguém tenha criado qualquer alternativa.
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