Chile deve se livrar de presidente de direita
Foto: Claudio Reyes/AFP
Saudado como um raro exemplo de estabilidade e solidez econômica na América Latina, o Chile, logo ele, atravessa um maremoto de insatisfação popular e de irritação com a política tradicional de consequências imprevisíveis. Uma onda de violentos protestos ao longo de 2019, centrados principalmente na escancarada e pouco combatida desigualdade social no país, acabou sendo contida pelos protocolos da pandemia, mas deixou na população um gosto amargo de demandas não atendidas que tem se traduzido nas urnas em apoio a novatos adeptos de ações radicais. Com eleições presidenciais e legislativas marcadas para 21 de novembro, o presidente Sebastián Piñera, de centro-direita, encara um pedido de impeachment e uma investigação policial por irregularidades financeiras, enquanto enfrenta mais de 70% de desaprovação. “O presidente infringiu abertamente a Constituição, em relação ao princípio de probidade, e comprometeu a honra da nação”, declarou o deputado socialista Jaime Naranjo, ao protocolar o pedido de afastamento apresentado pela oposição.
A justificativa para o impeachment seria a revelação de negócios escusos praticados por Piñera (bilionário que já foi apontado pela revista Forbes como o homem mais rico do Chile) e detectados na lista vazada pelos chamados Pandora Papers de detentores de empresas e contas bancárias em paraísos fiscais. Uma investigação foi aberta para apurar a ocorrência de suborno e crimes fiscais na venda de uma mineradora da família Piñera a um dos melhores amigos do presidente em 2010. Em paralelo, ele decretou estado de emergência e despachou tropas para conter uma rebelião de indígenas mapuches, que reivindicam autonomia e restituição de terras ancestrais em mãos de multinacionais da mineração. Os indígenas são justamente os mais afetados pela ausência de amparo social e pelas restrições nas aposentadorias em vigor desde a ditadura militar, questão central dos protestos populares e agora bandeira de campanhas eleitorais. “O estouro social resultou da constatação de que o Chile tomou um caminho equivocado em seu modelo de desenvolvimento. A ideia de um ‘novo Chile’, com maior presença do Estado, se tornou muito atraente”, explica Patricio Navia, diretor do Observatório Eleitoral da Universidade Diego Portales. Ou seja: há uma grande chance de o Chile trocar um caminho equivocado, o da falta de assistência absoluta aos mais necessitados, por outro — o dos males provocados pelo gigantismo do Estado.
Na tentativa de amainar o descontentamento, o governo colocou em plebiscito, no fim do ano passado, o projeto de uma nova Constituição para substituir a deixada pelo ditador Augusto Pinochet, totalmente desprovida de apoio à população pobre. O “sim” teve vitória esmagadora e a Assembleia Constituinte eleita em maio abriu vasto espaço para os candidatos dos extremos, sobretudo da esquerda. O ex-líder estudantil Gabriel Boric, de 35 anos, crítico do livre mercado e favorável a aumento de impostos, também está à frente nas pesquisas para presidente, seguido de perto pelo ultraconservador José Antonio Kast, que por seus comentários sobre aborto e homossexuais é chamado de “Bolsonaro chileno” (qualquer semelhança com o cenário brasileiro não é mera coincidência). A subida de Kast nas últimas semanas derrubou para o quarto lugar Sebastián Sichel, de centro-direita, ex-aliado de Piñera que se afastou dele e concorre como independente. Seja qual for o eleito, o novo presidente receberá uma economia que encolheu 5,8% em 2020 — a pior queda em quatro décadas — e terá de adaptar o orçamento para a elevação de gastos sociais que a nova Constituição deve aprovar. Não será tarefa fácil.
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