Viagem de Bolsonaro à Rússia não trará benefícios ao Brasil

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Em meio à tensão militar entre Rússia e Ucrânia, o presidente Jair Bolsonaro (PL) embarcou, na noite de ontem, rumo a Moscou. Horas antes, a apoiadores, o chefe do Executivo justificou que a visita tem cunho comercial e que “torce pela paz”. Apesar de aconselhado a remarcar a viagem de alto risco, Bolsonaro optou por mantê-la.

“Sabemos do momento difícil que existe naquela região. Temos negócios com eles, comerciais. Em grande parte, nosso agronegócio depende dos fertilizantes deles. Temos assuntos para tratar sobre defesa, sobre energia. Muita coisa para tratar”, argumentou. “E o Brasil é um país soberano. Vamos torcer pela paz lá, que dê tudo certo. A gente quer a paz, mas você tem de entender que todo mundo é ser humano. Vamos torcer para que dê certo. Dependendo de uma palavra minha, o mundo teria paz.”

A expertise em cibersegurança e ciberdefesa da Rússia também é outro fator de interesse brasileiro. Isso porque Bolsonaro confia às Forças Armadas brasileiras a missão de auditar as urnas eletrônicas junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e pretende fechar acordos de cooperação para capacitar a inteligência militar nacional. Devem participar das tratativas ministros militares do governo brasileiro.

Bolsonaro se encontrará com o presidente russo, Vladimir Putin, em, ao menos, duas ocasiões amanhã: numa reunião bilateral e durante um almoço no Kremlin, sede do governo local. Em seguida, ele se reunirá com o presidente da Duma, Câmara Baixa do Parlamento russo, e participará da entrega da oferenda floral no túmulo do soldado desconhecido.

A previsão é de que ocorra, ainda, um encontro de Bolsonaro com empresários no Four Seasons, hotel cinco estrelas localizado na Praça Vermelha, principal cartão-postal de Moscou, onde o presidente e parte da comitiva ficarão hospedados.

O vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB), que será o presidente em exercício até o retorno de Bolsonaro, previsto para o dia 18, disse que a viagem não deve causar problemas ao Brasil. Ele mencionou a recente visita do presidente argentino, Alberto Fernández, ao país comandado por Putin. “Na semana passada, o presidente da Argentina esteve lá (na Rússia), zero trauma”, justificou. “Na minha opinião, vai ficar nesse jogo de pressão. A viagem do presidente é de um dia só, sem maiores problemas”, frisou. Na última sexta-feira, às vésperas da viagem, o Itamaraty divulgou uma nota celebrando as relações diplomáticas do Brasil com a Ucrânia.

A comunidade internacional está de olho na ida de Bolsonaro à Rússia. De acordo com Paulo Roberto Almeida, diplomata e ex-presidente do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri), não há ideias ou ideologias semelhantes entre os governantes, mas oportunismos, interesses e circunstâncias. “Os dois presidentes são isolados da comunidade internacional, mas querem mostrar o contrário. Para Bolsonaro, porém, o efeito é contrário. Ele ficará mais (isolado) ainda, pois mostra desrespeito pelo direito internacional”, destacou. “A viagem pode passar a imagem de que o Brasil faz parte da agenda internacional, mas nem Putin nem (Joe) Biden (presidente dos Estados Unidos) acham que o Brasil tem influência na agenda internacional ou europeia. Não há influência nem na América do Sul.”

Na avaliação do especialista, Bolsonaro viajou para provar que podia, queria e não se deixa dobrar. Foi “aproveitar para tirar fotos em Moscou, aparecer nos jornais internacionais, e só”.

Oportunismo
Para Günther Richter Mros, professor de relações internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), como a visita já estava marcada, tem um tom diplomático. Porém, por meio dela, Bolsonaro busca vantagens eleitorais. “A viagem tem um significado comercial e outro significado mais simbólico, oportunista, que só serve para Bolsonaro capitalizar na política interna em ano eleitoral. Uma suposta imagem de aliado de um chefe de Estado poderoso, uma vez que, nos EUA, o presidente perdeu a interlocução”, observou.

Ricardo Caichiolo, cientista político do Ibmec-DF, apontou que, do lado de Bolsonaro, há a tentativa de sair do isolacionismo, e, para o governante russo, a agenda também é positiva, mesmo que não haja declarações de apoio. “Putin pode usar como uma forma de mostrar que há um apoio externo à política por ele adotada, o que é uma preocupação nossa perante os demais países”, frisou. “É um momento delicado. Essa viagem pode sinalizar um apoio, e isso não é o que está na nossa agenda externa.”

Na quinta-feira (17/2), Bolsonaro irá à Hungria, de Viktor Orbán, outro avesso aos interesses ocidentais e à democracia.

Apesar de o presidente Jair Bolsonaro (PL) alegar que as relações comerciais entre Brasil e Rússia são importantes para justificar a ida a Moscou no meio de uma crise geopolítica, além de arriscada, a viagem não deve trazer retornos relevantes para o país, conforme alertam especialistas. Para eles, o deslocamento custará caro ao chefe do Executivo e ao país, porque não é justificável do ponto de vista comercial e poderia ser postergado, sem criar problemas diplomáticos entre os dois países.

A Rússia não é o principal destino das exportações brasileiras, conforme dados da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) do Ministério da Economia. Em 2021, o país governado por Vladimir Putin ficou em 36º lugar na lista dos principais compradores dos produtos brasileiros, à frente apenas da África do Sul, entre os parceiros do Brics — grupo dos emergentes que inclui, também, Índia e China.

Moscou respondeu por 0,6% dos embarques nacionais no ano passado, ou seja, US$ 1,59 bilhão. Enquanto isso, China e Estados Unidos — os dois maiores parceiros comerciais brasileiros — compraram, respectivamente, US$ 87,9 bilhões e US$ 31,1 bilhões, no ano passado, em produtos nacionais.

As importações brasileiras provenientes da Rússia somaram US$ 5,7 bilhões em 2021, gerando saldo comercial negativo de US$ 4,11 bilhões no comércio bilateral.

Na avaliação do cientista político David Fleischer, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), a viagem de Bolsonaro à Rússia tem um único objetivo: tentar melhorar a projeção internacional do presidente brasileiro, que é muito negativa. “Bolsonaro diz que está indo para comprar fertilizantes, mas essa compra vai sair muito cara, dada a distância da Rússia”, disse. “O Brasil é um pária internacional, e o presidente quer melhorar a imagem dele no exterior. Mas não sei se ele vai conseguir, porque deverá chegar a Moscou no dia ‘D e na hora H’ das previsões para o ataque russo à Ucrânia”, alertou, fazendo uma ironia às declarações do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello sobre a data da vacinação dos brasileiros contra a covid-19, que nunca chegava.

Para Fleischer, a justificativa de que o convite foi feito antes da crise e de que o governo brasileiro não poderia recusar “não é plausível”. “O que não tem muita lógica é o Brasil se arriscar a se indispor com o resto do mundo para um país com pouco peso na balança comercial nacional”, acrescentou.

Especialista em relações internacionais e CEO da BMJ Consultores Associados, Wagner Parente também reconheceu que o comércio do Brasil com a Rússia é desfavorável para o lado brasileiro, que tem deficit comercial com os russos. “As importações são concentradas em fertilizantes, que é importante para o agronegócio. Mas, no cômputo geral, o peso do comércio com os russos é muito pequeno se comparado com os Estados Unidos e com a China ou, até mesmo, com o Oriente Médio”, destacou. “O investimento bilateral também é muito pequeno, e uma das poucas tentativas brasileiras na Rússia não foi muito bem-sucedida”, enfatizou, citando o caso de uma grande fabricante de alimentos que tentou desbravar o mercado russo, mas desistiu em menos de dois anos e saiu do negócio.

Conforme os dados da Secex, mais da metade das importações brasileiras provenientes da Rússia, US$ 3,5 bilhões, foi de fertilizantes — volume 97% superior ao registrado no ano anterior.

A China — país com o qual o Brasil tem superavit de US$ 40,2 bilhões no comércio bilateral — exportou US$ 2,1 bilhões em adubos químicos para o mercado brasileiro, dado 250% superior ao de 2020.

Correio Braziliense