Filme denuncia a violência da polícia militar governada há décadas por tucanos em SP
Em tempos de ânimos políticos acirrados, o documentário “Marcha Cega”, longa de estreia do diretor Gabriel Di Giacomo (ex-MTV) que está em cartaz nos cinemas brasileiros, pisa em uma ferida polêmica. O filme acusa abertamente a Polícia Militar do Estado de São Paulo de reprimir de forma abusiva, violenta e desproporcional protestos ligados à esquerda e a movimentos sociais. O trailer pode ser visto neste link.
Essa história é contada pelas próprias vítimas de violência promovida por agentes da PM nos últimos anos da gestão de Geraldo Alckmin, do PSDB, no governo do Estado. Entre cenas e relatos fortes de manifestantes, o filme inclui falas de socorrista, estudantes secundaristas, black blocs, do ex-secretário de Segurança Nacional Luiz Eduardo Soares e do tenente-coronel de reserva da PM de São Paulo Adilson Paes e Souza.
As imagens compreendem o período de 2013 a 2016, dos primeiros atos contra o aumento das passagens de ônibus e metrô aos protestos que contestaram o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). “A ideia de fazer o filme veio quando começaram as manifestações contra o impeachment. Percebemos uma repressão muito truculenta. Então começamos a pesquisar para trás e vimos que não era uma ação isolada por parte das autoridades”, diz ao UOL Gabriel Di Giacomo.
O depoimento mais simbólico do filme, inspiração para o título, é o do fotógrafo Sérgio Silva, que perdeu a visão do olho esquerdo ao ser atingido durante manifestação em junho de 2013. Ele acionou a Justiça e teve indenização negada pela 9° Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, que entendeu não haver provas suficientes de que o ferimento tivesse sido causado por uma bala de borracha.
Após diversos outros casos de jornalistas feridos, incluindo a repórter da TV Folha Giuliana Vallone, acertada no olho por uma bala de borracha disparada pela Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), a 10ª Vara da Fazenda Pública da Capital chegou a proibir o uso de balas de borracha e gás lacrimogêneo em manifestações no Estado de São Paulo, sob multa de R$ 8 milhões, mas o Tribunal de Justiça paulista suspendeu a decisão em 2017.
Outro ponto controverso de “Marcha Cega” é a divulgação de trechos do Procedimento Operacional Padrão (POP) 5.12, a conduta que, segundo o documentário, vinha sendo ignorada por oficiais. Divulgado inicialmente pelo site “Ponte”, o documento estipulava regras para o uso de munição de borracha em manifestações. Exemplo: os tiros deveriam ser feitos a pelo menos 20 metros do alvo e o disparo deveria “ser preciso”, “direcionado para os membros inferiores do agressor ativo”.
“Todas essas normas não são cumpridas e não há nada, nenhum relatório divulgado pela polícia. Não há punição. E nenhum dos especialistas com quem conversei conseguiu citar um caso de abuso em manifestação que o estado ou a polícia acabaram considerados culpados das agressões”, afirma o diretor. “Vemos uma estrutura perversa de segurança pública, na qual o estado trabalha contra a população, que é prejudicial inclusive para o próprio policial.”
Costurado em forma de denúncia, “Marcha Cega” relativiza a atuação dos chamados black blocks, sob o argumento de que a violência praticada por eles é uma resposta simbólica, concretizada apenas após a primeira agressão policial. A cobertura da imprensa, que estaria mais preocupada em noticiar a “baderna” dos manifestantes do que os abusos do poder público, também é criticada com veemência no filme.
Apesar disso e de não contar com nenhum depoimento oficial da Secretaria de Estado da Segurança Pública ou do comando da Polícia Militar —o tenente-coronel de reserva Adilson Paes e Souza, por exemplo, é a favor da desmilitarização— Di Giacomo não vê seu filme como panfletário ou militante. “Nós tentamos, mas não conseguimos falar com nenhuma autoridade policial”, lamenta.
“Ninguém respondeu nosso convite, e quem respondeu negou. Chegamos a conversar com alguns policiais que conhecemos, mas eles não quiseram falar, temendo consequências da polícia. Dependendo, o cara pode ser até preso”, afirma o cineasta. “Fato é que o silêncio das autoridades é mais um indício de como o estado funciona. Ele prefere se afastar da população a debater.”
Procurada pelo UOL para comentar os casos de abuso documentados no filme, a PM de São Paulo afirmou em nota oficial que “sempre atuou em protestos, garantindo a liberdade de expressão e o direito de manifestação. Desde 2013, as polícias acompanharam mais de 9 mil protestos, no Estado, garantindo a segurança dos manifestantes e o direito da população. Apenas em 5% delas, foi necessário uso de técnicas de controle de distúrbio”.
“No ano de 2013, pessoas fora dos movimentos organizados cometeram atos de vandalismo e causaram danos sérios ao patrimônio público e privado. Mais uma vez, a Polícia Militar garantiu o direito à manifestação e restabeleceu a ordem pública quando necessário. Por se tratar de uma atuação que precisa sempre de aperfeiçoamento, a Polícia Militar buscou novas estratégias de atuação e investiu em aquisição de equipamentos e no treinamento do efetivo. Todos os IPMs instaurados à época das manifestações de 2013 foram concluídos e relatados ao TJM. Cabe salientar que compete ao Ministério Público a análise dos autos e a propositura, ou não, de denúncia, baseado na análise das provas materiais e testemunhais colhidas e dos indícios de eventuais condutas ilegais”, concluiu a nota.
Exibido recentemente no Festival Chico de Cinema, em Palmas e no festival recifense Cine PE, “Marcha Cega” estreou no circuito comercial na última quarta (26) em 19 cidades do país, com preços promocionais que vão até o dia 10 na rede Cinemark.