Aliança Lula-Alckmin esvaziou terceira via e enfraqueceu o PSDB
Foto: Zanone Fraissat
Os vices são um problema político no Brasil desde o nascimento da República. Floriano Peixoto e João Goulart protagonizaram papéis cruciais em momentos de instabilidade. Após a redemocratização, que teve dois impeachments, três dos cinco vices assumiram a Presidência acusados de tramarem contra os titulares ou de romperem com os grupos que os elegeram. No atual governo, o vice Hamilton Mourão é tratado como inimigo pelo bolsonarismo desde os primeiros dias de gestão.
Assim, é surpreendente que o atual líder nas pesquisas, o ex-presidente Lula, tenha escolhido exatamente um adversário histórico para compor sua chapa nas eleições daqui a sete meses. Seja uma jogada de mestre ou manobra temerária, a adesão de Geraldo Alckmin à candidatura do petista na prática mudou o cenário eleitoral. Esvaziou a terceira via e enfraqueceu o PSDB, que rivaliza com o PT no campo da centro-esquerda desde os anos 1980. Quatro vezes governador e candidato a presidente em duas ocasiões, Alckmin acaba de se desligar da antiga legenda para se filiar no final do mês ao PSB. O movimento, como era previsto, decepcionou antigos aliados e também criou problemas para as principais lideranças petistas, já que a grande maioria dos filiados vê o ex-governador como um inimigo dos movimentos sociais abrigados no PT.
Lula, no entanto, ignora essa chiadeira, repetindo o gesto que tomou em 2002, quando escolheu para vice o empresário José Alencar (PL), morto em 2010, o que serviu como passaporte para o partido se aproximar da classe média e dos empresários, fator que acabou sendo decisivo para a vitória naquele ano contra o PSDB de José Serra e FHC. O líder petista, inclusive, pretende encerrar de vez essa polêmica no próximo dia 9, quando deve realizar um grande ato público na avenida Paulista para o lançamento de sua candidatura, com festa popular e artistas que o apoiam. O ex-tucano terá lugar de destaque ao seu lado no alto do carro de som que animará o evento.
“Essa aproximação faz a gente lembrar das eleições de 2006, quando Alckmin perdeu o pleito para Lula”, diz Marcia Dias, professora da UNIRIO. Entre as vantagens, dá uma contrapartida religiosa aos eleitores evangélicos de Bolsonaro e aproxima o eleitor mais conservador do petismo. Para a pesquisadora, Alckmin deseja ter projeção nacional e sua participação na chapa permite que Lula seja “ainda mais de esquerda na hora de falar para o seu eleitor, uma estratégia política bem pensada que a gente não sabe se vai dar certo”, afirma. Além de convencer a sociedade de suas intenções, Lula precisará lidar com o público interno. Assim como em 2002, dará um recado duro aos petistas que rejeitam Alckmin. Deverá fazer um pronunciamento em reunião do Diretório Nacional do PT, o que previa fazer no dia 18, em São Paulo, para deixar claro que o partido deve tomar de forma unânime a decisão de abraçar o ex-tucano. Há 22 anos, Lula chegou a ameaçar não ser candidato caso o PT vetasse a coligação com o PL de Alencar.
Um dos que lideram o movimento contra Alckmin é o deputado Rui Falcão, ex-presidente nacional do PT. “É um erro estratégico brutal”, disse. Ele considera que a presença do ex-tucano pode desmobilizar a militância e também saca um argumento de peso: o risco de “traição”, que o MDB de Michel Temer já teria cometido contra Dilma Rousseff em 2016. Essa ponderação, no entanto, não tem sensibilizado Lula. Ele não demonstra ressentimento e tem conclamado os líderes emedebistas a apoiarem sua candidatura, incluindo o senador Renan Calheiros e outros dirigentes de peso da legenda, como José Sarney. “Alckmin tem estatura política”, diz Lula, que confia no ex-governador. Para diminuir o risco de “conspiração”, o petista já lhe prometeu um ministério, provavelmente o da Agricultura, para que Alckmin não tenha função meramente burocrática, como tinha Temer. Cientistas políticos consideram que o desejo hegemônico do PT, que escanteou os aliados no governo Dilma, foi exatamente um dos gatilhos do impeachment.
Mas os petistas mais radicais continuam a pressionar Lula, testando as determinações do ex–presidente. A costura envolve outros partidos. Um dos que mais pressionam o petista é o coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, Guilherme Boulos (PSOL), que deseja ser candidato ao governo de São Paulo (Lula tenta demovê-lo para privilegiar Fernando Haddad). Quando lhe dizem que Alckmin poderá ajudar o petista na governabilidade, o líder sem-teto pergunta: “Quantos deputados o Alckmin tem no Congresso? Nenhum”. E completa:“Pega a bancada do PSDB no Congresso, que já é bastante diminuta hoje. Quantos respondem ao Alckmin?”
“Os eventuais incômodos dentro do PT foram muito tímidos”
Rafael Cortez, cientista político da FGV
Cassetete nos sem-teto
“Os eventuais incômodos dentro do PT foram muito tímidos. Ocorreram manifestações quase pessoais”, avalia Rafael Cortez, cientista político da FGV e sócio da Tendência Consultoria. Ele considera que Alckmin favorece Lula pois reduz a percepção de risco associada ao petista e “faz com que o PT não precise fazer concessões em termos programáticos”. O ex-presidente explica que deseja se aproximar do centro para ampliar seu apoio na sociedade, afastando a visão de que é candidato da extrema esquerda radical.
Depois de se beneficiar com a anulação das sentenças que o fustigaram e o levaram à prisão, Lula diminuiu sua rejeição e sonha até em ganhar no primeiro turno. Mas sua campanha tropeçou com o apoio a ditadores amigos, como o nicaraguense Daniel Ortega, e também com as dúvidas sobre uma eventual volta à política econômica nacionalista, com populismo e ataque às privatizações. Nesse aspecto, Alckmin seria o maior avalista de que a iniciativa privada poderá ter participação maior em seu governo. Boulos e Falcão expressam a rejeição a essa tese. “Na periferia, as pessoas querem ter um vice com outra trajetória, que não tenha uma concepção neoliberal e que não defenda as privatizações”, disse Falcão. Já Boulos lembrou que Alckmin, quando era governador, liderou a maior repressão da história contra os sem-teto que ocuparam uma área conhecida como Pinheirinho, em que centenas de trabalhadores foram desalojados à base de cassetetes. As críticas também partem da Fundação Perseu Abramo, presidida pelo ex-senador Aloizio Mercadante. Em documento de 89 páginas, a entidade lembra que Alckmin governou São Paulo de 2001 a 2006 e de 2011 a 2018, períodos em que “adotou políticas neoliberais e ampliou as desigualdades sociais, concentrou renda, riqueza e propriedade, além de sucatear os serviços públicos”.
Na ala moderada do petismo, há lideranças que compreendem o jogo de Lula. O prefeito de Araraquara, Edinho Silva, ex-presidente do PT de São Paulo, acha que a disputa este ano se dará entre a democracia e o autoritarismo representados por Bolsonaro. “Apesar das contradições, é hora de buscarmos muito mais o que nos une do que aquilo que nos separa”, resume. Pensamento semelhante têm petistas históricos como o ex-governador Tarso Genro e os senadores Paulo Paim e Humberto Costa. Lula não está pensando só na eleição, mas depois do pleito também, concorda Paulo Baia, sociólogo e professor da UFRJ. “O sentimento antipetista ainda é muito forte. Essa aliança é uma estratégia bem parecida com a do Lulinha Paz e Amor de 2002, embora o cenário não seja o mesmo”, diz.
Papel em área vital
Alckmin se agarra como pode nessa aliança, pois deve ser seu último ato na política nacional. Ele amargava o ostracismo desde que sofreu uma derrota humilhante na eleição presidencial de 2018, quando fez apenas 4,7% dos votos. Encara a nova fase como uma hábil volta por cima. Não deseja ser um vice decorativo. Além de atuar como ponte entre os extremos para diminuir a polarização no País, deseja ter protagonismo em alguma área estratégica. Cogita (a exemplo do atual vice, Hamilton Mourão) ter alguma responsabilidade na área ambiental, que é relevante para os acordos comerciais e para a inserção internacional do Brasil. Para encarnar o novo papel, tem procurado multiplicar encontros com lideranças progressistas em seus tradicionais encontros em padarias pela capital paulista. Tomou cafezinho com o vereador Eduardo Suplicy, com o sacerdote de candomblé Diego Aira e com a influencer e ex-BBB Ariadna Arantes, representante da comunidade trans. É um reposicionamento importante para um político que sempre foi ligado à direita do seu antigo partido, identificado com a Igreja Católica e sua ala mais conservadora, a Opus Dei.
O contorcionismo ideológico será grande. Alckmin sempre teve uma militância histórica de combate ao PT e, especialmente, a Lula, a quem responsabilizou pelo mensalão, em 2005, e pelo petrolão, em 2014. Por isso, muitos classificam essa mudança, numa escala inédita até para a volúvel política nacional, como um mero casamento de conveniências. Os problemas vão aparecer durante a campanha. Circulam entre ex-aliados vídeos em que ele faz críticas contundentes a Lula por liderar o processo de corrupção no qual o PT mergulhou. Essas peças, certamente, serão usadas no horário eleitoral contra o petista. Também há os problemas na Justiça do ex-governador. Um executivo da Ecovias afirmou em delação recém-divulgada que Alckmin recebeu R$ 3 milhões em caixa 2 em suposto cartel entre concessionárias de rodovias paulistas — a Justiça Eleitoral arquivou o inquérito e o ex-governador nega. Essa acusação já provocou uma reviravolta na política paulista. Os petistas passaram mais de 20 anos atacando Alckmin e os tucanos por supostos desvios na gestão estadual. Agora, passaram a defender o ex-governador, como fez o deputado Paulo Teixeira. Lula não transparece preocupação. Pretende exibir na TV o que considera um “salvo conduto para o crime”, que foram as decisões judiciais em que ministros do STF anularam as sentenças da Lava Jato nas quais foi condenado.
Mais do que tudo, o cavalo de pau ideológico de Alckmin serviu para provocar uma cisão na centro-direita, especialmente no PSDB. O presidenciável tucano, João Doria, não quer polemizar com o político que o lançou na carreira pública, em 2016. Mas também não deixa passar em branco as incoerências do amigo. “A decisão de Alckmin de deixar o PSDB e se unir a Lula é uma questão de foro íntimo, mas eu jamais me associaria a um ladrão”, disse o governador paulista à ISTOÉ. E deixa claro que amigos, amigos, política à parte.“Se o ex-governador for realmente o vice de Lula, combaterei os dois na campanha e serei duríssimo nesse enfrentamento”, complementou.
Lula engendrou uma eficiente estratégia de solapar a terceira via. O petista estaria fazendo um jogo combinado com o PSD do ex-ministro Gilberto Kassab para dificultar o fortalecimento das candidaturas de Doria e de Sergio Moro (Podemos). Kassab foi um dos maiores incentivadores da desfiliação de Alckmin do PSDB e contava com ele no PSD. Mas o ex-tucano preferiu se aliar ao PSB. A tática agora é atrair outra estrela do ninho tucano: o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, lançando-o pelo PSD. A candidatura de Leite, definitivamente, dividiria os votos do campo centrista e colocaria Lula em situação confortável para enfrentar Bolsonaro, o oponente dos sonhos do petista.