Pastores substituem temas religiosos por política para doutrinar jovens

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Foto: Reprodução

Quando não está jogando bola ou fazendo um vídeo para o TikTok, Jean, 15, gosta de adorar a Deus e ouvir sermões bíblicos. Acha Silas Malafaia “maneiro”, bem mais do que o “pastor velho” que prega na denominação batista da mãe, daí ter passado a frequentar a igreja do maior canhão bolsonarista no segmento evangélico hoje.

Jean está pasmo. “Aprendi muito hoje”, diz na saída do Imersão Amplitude, evento criado pela juventude da Assembleia de Deus Vitória em Cristo para discutir política com fiéis que muitas vezes ainda nem têm idade para tirar o título de eleitor.

Ele terá. Completa 16 anos, idade mínima para tanto, um mês antes da eleição.

O adolescente que mal havia deixado a infância quando Jair Bolsonaro (PL) chegou ao poder diz que saiu do encontro, realizado em fevereiro na sede da igreja carioca, convencido de que sua geração precisa agir, e logo, para evitar um regime comunista no Brasil.

Não sabe explicar direito o que seria isso, mas acha que tem a ver com a liberação de drogas e a permissividade no sexo.

Jean nem sabia que já poderia votar neste pleito. Agora sabe. O eleitorado jovem pode ser o fiel da balança neste pleito, mas precisa de um empurrãozinho, e pastores bolsonaristas perceberam isso.

Sobretudo numa eleição acirrada como a de 2022, já definida por Bolsonaro, que todos os convidados do Amplitude querem ver reeleito, como uma luta “do bem contra o mal”.

Alguns dos líderes evangélicos mais populares do Brasil têm intensificado a agenda política em seus templos, de olho nessa faixa etária.

A Folha mostrou que, a menos de um mês do prazo para emitir o título de eleitor, apenas 17% dos adolescentes de 16 e 17 anos haviam se cadastrado. Ir às urnas só é obrigatório depois dos 18.

O clamor para que essa turma não deixe de votar aparece num vídeo que anda circulando pela “crentenet”, a fauna virtual voltada a evangélicos, tal qual apelidada por um amigo que acompanhava Jean.

Conduzida por evangélicos jovens, a campanha enfileira bordões que fariam bonito em qualquer palanque bolsonarista.

“Jovens cristãos influentes fazendo um contraponto a Anitta”, escreve Malafaia após disparar o conteúdo para suas listas no WhatsApp. A zanga com a cantora, uma das mais populares do país, deve-se aos duelos públicos que ela vem travando com Bolsonaro e seus asseclas.

Apertado o play, começa o fluxo que tinge de religiosidade o ringue político. São depoimentos costurados sob uma trilha sonora dramática: “Esses artistas estão usando a sua inocência para articular seus planos maléficos esquerdistas”, “não se renda ao discurso bonito da internet”, “nós somos o futuro da nação, e Deus nos convoca para essa guerra espiritual” etc.

O vídeo fecha com “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, o slogan máximo do bolsonarismo. O ex-presidente Lula (PT), potencial rival de Bolsonaro, não é nominalmente citado, mas lá está ele.

“Não permita que o que já nos fez sofrer volte ao poder”, diz o pastor André Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha, um nome particularmente pop na garotada evangélica.

Valadão fala a língua dos jovens. Recentemente introduziu sua igreja no metaverso, ambiente que simula uma realidade virtual. Também faz sucesso com a caixa de perguntas e respostas que abre em suas redes sociais.

Há muitas banalidades, como o seguidor que quer saber se é pecado comer sushi (“claro que não, se deixar, eu como uma baleia crua”), ou a seguidora que cogita divórcio porque o marido se recusa a tratar uma disfunção erétil (“é pecado, você casou na enfermidade e na saúde, tá?”).

Não raramente o papo envereda para rixas ideológicas. De um aparelho de musculação da academia, respondeu que o fiel disposto a comemorar o alcance global de Anitta “não é crente, não, gente, pelo amor de Deus”.

Valadão incentiva abertamente o engajamento político dos cinco milhões de seguidores que acumula só no Instagram.

Questionado se seria “bolsominion”, alcunha pejorativa para admiradores do presidente, rebate: “Uma coisa eu sou: contra o socialismo, o comunismo e esse petismo da desgrama aí”. Pede em seguida que votem em deputados de direita.

Não disfarça a simpatia pela família Bolsonaro e o grupo que a orbita. Em janeiro, recebeu na sua igreja em Orlando (EUA), onde está sediado, o ministro Fábio Faria (Comunicações) e o blogueiro Allan dos Santos, foragido da política brasileira.

Tema do encontro: fé e política. Uma das frases de efeito ali proferidas pelo pastor: “A Bíblia não é um travesseiro pra gente deitar, é uma espada pra gente guerrear”.

No fim daquele mês, Valadão recepcionou no mesmo púlpito o caçula dos três filhos políticos do presidente. “Eduardo Bolsonaro, vem cá, precioso, querido”.

O deputado do PL-SP foi e aproveitou o espaço dado para sovar um alvo preferencial da direita aliada a Bolsonaro. “O comunismo é uma bactéria esperando o sistema imunológico e suas defesas baixarem para voltar”, disse.

O vereador Nikolas Ferreira (PL-MG) participou do primeiro encontro promovido por Valadão e depois esteve no Amplitude, de Malafaia. Junto com a deputada estadual Ana Caroline Campagnolo (PL-SC), é uma das estrelas da juventude bolsonarista.

Ele tem 25 anos e estudou na PUC mineira. Ela, hoje com 31, frequentou uma universidade pública em Santa Catarina. Os dois se destacaram, no início da carreira política, pelas críticas a um suposto monopólio da esquerda nas faculdades, que moeria todo e qualquer estudante afeito a valores conservadores. Defendem o Escola Sem Partido.

No telão da igreja, duas imagens: uma feminista pisando em cima de uma cruz e “Satã reina” pichado na porta de um banheiro de universidade pública. É uma covardia o que fazem com gente como ela, reclama Campagnolo, autointitulada antifeminista. Conta que era a única cristã numa turma de 30 alunos. Aí já viu. “Esses ambientes estão filtrando e dominando hegemonicamente o pensamento.”

A deputada ainda questionaria por que muitas mulheres se queixam de dupla jornada, no trabalho e depois em serviços domésticos. “Cuidar da sua família é humilhante?”

Humilhação, para quase todos que palestraram no evento, seria permitir a volta da esquerda ao poder.

William Douglas, o juiz federal que um dia sonhou em ser o ministro “terrivelmente evangélico” que Bolsonaro prometeu para o Supremo Tribunal Federal, até tenta argumentar que um mau cristão faria lambança em qualquer regime, independentemente do viés ideológico. “Gosto de frisar que Jesus não é de direito nem de esquerda.”

Campagnolo o corta. “Posso complementar? Jesus não é de esquerda nem de direita, mas Judas com certeza é de esquerda.” Essa tirada entusiasma bem mais a plateia.

A proximidade dessa igreja em particular com Bolsonaro, e tudo o que ele representa, tem estrada. Em 2016, ainda deputado, mas já com uma campanha presidencial na cabeça, o atual mandatário já tinha sido chamado para discutir política no templo de Malafaia.

“Dar consciência para essa garotada”, segundo o pastor, é um contraponto importante “às universidades e escolas, que estão lotadas de esquerdopatas mostrando só um lado da história”.

Líder da juventude da Vitória em Cristo, o pastor e militar Gabriel Pinheiro, 36, diz à Folha que, antes da eleição de 2018, percebeu que adolescentes em geral “estavam mais apaixonados pelas ideologias em que acreditavam”, e levavam suas paixões para família, trabalho, redes sociais. Hoje acha o histrionismo digital um pouco menor, “o que mostra que eles estão estudando mais sobre o assunto antes de falar”.

Na porta do Amplitude, havia um estande divulgando a Faculdade Vitória em Cristo, estreia de Malafaia no setor educacional. Foi lá que a reportagem conheceu Jean, interessado em estudar mais.

Folha