ONU volta a acusar Rússia de crimes de guerra

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Foto: Mikhail Klimentyev / Sputnik / AFP

Em um primeiro informe sobre a guerra na Ucrânia, a ONU denuncia possíveis crimes de guerra contra a população civil e fala em “milhares de mortos” na cidade de Mariupol e no restante do país. Apesar disso, o governo brasileiro não assinou uma proposta feita por cerca de 60 países para convocar na Organização das Nações Unidas uma reunião de emergência para lidar com as violações cometidos na Ucrânia pelas tropas russas.

O Itamaraty garante que não irá se opor à realização do encontro, mas defendia que mais tempo fosse dado para que investigações independentes pudessem ocorrer sobre as violações de direitos humanos no país.

De acordo com a ONU, os monitores da entidade documentaram violações do direito humanitário internacional e das leis de direitos humanos que vêm ocorrendo no país. Muitas dessas acusações, diz a entidade, dizem respeito a violações que podem equivaler a crimes de guerra.

“O alto número de vítimas civis e a extensão da destruição e danos a objetos civis sugerem fortemente violações dos princípios que regem a condução das hostilidades, ou seja, distinção, incluindo a proibição de ataques indiscriminados, proporcionalidade e precauções”, denuncia a ONU.

“Escolas, hospitais, casas particulares e edifícios residenciais de vários andares foram destruídos em muitas das áreas que visitei. Até hoje, temos registrado centenas de instalações educacionais e médicas destruídas ou danificadas em áreas afetadas por hostilidades em todo o país”, alertou.

Liderado por Kiev e todas as capitais europeias, o projeto conseguiu apoio suficiente para que o Conselho de Direitos Humanos da ONU convocasse uma reunião para quinta-feira (12). O objetivo será o de analisar justamente as denúncias de crimes de guerra por parte da Rússia e aprovar uma resolução condenando o presidente Vladimir Putin.

Para que um encontro de emergência seja estabelecido, a proposta precisa de um terço dos 47 membros do Conselho. Até a noite de ontem, o “número mágico” já tinha sido atingido, com o apoio dos governos da Finlândia, França, Gâmbia, Alemanha, Japão, EUA e outros. Na América Latina, o México apoiava a proposta.

Outros 37 países que não fazem parte do Conselho também deram seu apoio, entre eles vários latino-americanos como Colômbia, Costa Rica, Guatemala e Peru. Países que mantêm uma relação de proximidade com o Kremlin, como a Hungria, também deram seu apoio formal.

China, Índia e África do Sul —todos membros dos Brics— não aderiram ao projeto.

Procurado, o Itamaraty explicou sua posição. “No entendimento brasileiro, a realização de uma sessão especial sobre a Ucrânia se beneficiaria de mais tempo para o adequado transcurso das investigações sobre as violações de direitos humanos no país”, disse. O processo de investigação foi lançado em março, com a criação de uma comissão de inquérito. Mas o trabalho do mecanismo está longe de estar concluído.

“Ainda assim, o Brasil não se opõe à iniciativa, tendo em conta a deterioração do quadro geral na região e o importante papel exercido pelo Conselho de Direitos Humanos no monitoramento da situação dos direitos humanos na Ucrânia”, explicou.

Segundo a nota, o Brasil tem “favorecido o debate sobre a situação na Ucrânia nos órgãos multilaterais, em particular no âmbito das Nações Unidas, onde temos apoiado iniciativas e resoluções sobre o tema”. “Na última sessão do Conselho de Direitos Humanos (CDH), em março, o Brasil votou a favor da resolução sobre a “Situação dos Direitos Humanos na Ucrânia em decorrência da agressão russa”, afirmou.

“Paralelamente, o Governo brasileiro acompanha com preocupação a evolução da situação no terreno. O Brasil tem defendido que os relatos de violações de direitos humanos na Ucrânia sejam prontamente investigados, de forma independente, objetiva e transparente, pelos órgãos internacionais competentes, incluindo a Comissão de Inquérito estabelecida para esse fim na Resolução 49/1 do Conselho”, completou.

Na ONU, a comissão sequer está completamente operacional.

Ainda assim, a entidade afirma que já conta com uma apuração que permite uma primeira imagem dos crimes cometidos na Ucrânia. Matilda Bogner, chefe da missão de monitoramento da ONU no país, apresentou nesta terça-feira uma lista de crimes e violações de direitos humanos depois de visitar 14 cidades que foram abandonadas por tropas russas.

Segundo ela, puderam ser registrados pelo menos 204 casos de desaparecimentos forçados, a maioria por forças russas. “Documentamos alguns casos em que as forças armadas russas haviam detido civis, em sua maioria homens jovens, e os transferiram para Belarus e depois para a Rússia, onde foram detidos em centros de detenção pré-julgamento”, denunciou.

Um dos focos foi ainda a região de Bucha. Ali, de acordo com a representante da ONU, uma pessoa relatou como temia sair de casa para encontrar comida e água. “Em Bucha e em outros assentamentos ao norte de Kiev que foram ocupados pelas forças armadas russas, temos relatos da morte ilegal de mais de 300 homens, mulheres e crianças. Infelizmente, estes números continuarão a crescer à medida que visitarmos mais áreas”, alertou. “Dependendo das circunstâncias, a morte de um único civil ou de alguém em combate pode constituir um crime de guerra”, insistiu. “São mortes ilegais, como execuções sumárias”, disse.

“O que temos dá uma primeira foto do que está ocorrendo na Ucrânia e preocupações. Vai levar tempo para entender a escala real das violações”. disse Bogner.

Ela também destaca que sua equipe estima que “existam milhares de mortos em Maripoul”. De uma forma geral, a ONU fala em mais de 3 mil mortos entre civis em toda a Ucrânia. Mas Bogner insiste que esse número é apenas uma parcela já confirmada dos crimes. “O número total será de milhares a mais do que temos”, admitiu.

O informe ainda denuncia tratamento desumano contra soldados de ambos os lados, além de tortura.

“As pessoas nos falaram de parentes, vizinhos e amigos mortos, feridos, detidos e desaparecidos. Em Makariv, uma família de cinco pessoas foi alvejada pelas forças armadas russas quando tentavam sair com seus vizinhos de carro. Infelizmente, apenas dois membros da família sobreviveram”, relatou a representante da ONU.

Segundo ela, na aldeia de Yahidne, na região de Chernihiv, um homem de 70 anos passou 24 dias no porão de uma escola local. “Ele nos disse com lágrimas nos olhos que dividia um quarto de 76 metros quadrados com 138 pessoas – o mais jovem tinha apenas dois meses de idade. O espaço estava tão lotado que ele teve que dormir de pé e se amarrou a trilhos de madeira para não cair”, disse.

A ONU ainda destaca como ambos os lados na guerra passaram a usar escolas como base militares e como, ao longo do conflito, russos deixaram de atacar apenas alvos militares para também atingir a população civil. Segundo ela, os relatos, se confirmados, poderia constituir crimes de guerra.

De acordo com a ONU, a entidade continua a “receber denúncias de estupro, incluindo estupro em grupo, tentativa de estupro, nudez forçada, ameaças de violência sexual contra mulheres civis e meninas, homens e meninos”.

“As mulheres e meninas são as vítimas mais frequentemente citadas. Durante minha recente visita às cidades ao norte de Kiev, documentamos uma série de casos de violência sexual. Em uma cidade que visitamos, uma mulher foi violada e morta supostamente por um soldado russo. O mesmo soldado tentou então estuprar sua vizinha. O marido dessa mulher interveio, mas depois foi baleado pelo soldado. Mais tarde, ele morreu », contou a representante da ONU.

O cenário repete o esforço do Brasil em manter um equilíbrio delicado na guerra da Ucrânia. Se o Brasil é pressionado a condenar a violência contra civis e a invasão de um país soberano, o Itamaraty insiste que a situação de Moscou também precisa ser considerada.

Essa postura atenderia a pelo menos três objetivos. O primeiro seria, em termos nacionais, evitar um confronto direto com Putin e deixar as portas abertas no Kremlin para que o Brasil possa negociar acesso a fertilizantes e outros produtos oferecidos por Moscou.

O segundo objetivo é o de manter uma das poucas relações de Bolsonaro com um líder estrangeiro.

Para completar, o terceiro seria o de não desmontar o sistema multilateral. Não por acaso, o Brasil não apoiou a suspensão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos e se absteve em diferentes outras resoluções que estabeleciam medidas contra Moscou.

Durante o encontro, porém, a posição brasileira uma vez mais será testada, já que uma resolução será submetida a voto e caberá ao Executivo sinalizar de que maneira irá reagir.

Nas últimas semanas, os governos dos EUA e do Reino Unido —ambos membros do Conselho— têm elevado a pressão sobre o Brasil para que o país passe a fazer parte dos governos que apoiam um isolamento diplomático de Putin.

Uol