Bolsonaro não pode impor condições

Destaque, Todos os posts, Últimas notícias

Foto: Vinicius Dotti – mar.19/Fundação FHC/Divulgação

Não é preciso esperar para ver qual a conduta de Jair Bolsonaro (PL) diante de uma eventual derrota na eleição para saber se ele comete crime contra o Estado de Direito.

Para Alaor Leite, professor de direito penal da Universidade Humboldt (Alemanha), o fato de o presidente ter imposto condições para aceitar o resultado, em meio a uma campanha de desinformação contra o sistema eleitoral, é suficiente para que seja investigado por eventual enquadramento no Código Penal.

Incluído no ano passado na legislação que substituiu a Lei de Segurança Nacional, o artigo 359-L prevê reclusão de quatro a oito anos para quem “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos Poderes constitucionais”.

Leite e o professor de direito constitucional Ademar Borges tratam do tema em parecer a pedido das organizações Artigo 19, Comissão Arns e Conectas. A dupla avalia que a tática de desinformação com a imposição de condições para aceitar o resultado bastam para configurar a “grave ameaça” citada na lei.

O parecer versa sobre representação ajuizada pelo Ministério Público Eleitoral ao TSE para apurar suposta propaganda eleitoral antecipada no discurso com ataques ao sistema eleitoral feito por Bolsonaro a embaixadores em julho. À Folha Leite analisa possíveis ilegalidades no 7 de Setembro, a operação do STF contra empresários bolsonaristas e a interlocução do tribunal com as Forças Armadas às portas do pleito.

O professor da Universidade Humboldt traça também um paralelo com o debate sobre liberdade de expressão na Alemanha, país com histórico de preocupação em traçar regras claras para separar o legítimo direito à manifestação de pensamento do discurso de ódio.

Bolsonaro tem proferido seguidos ataques ao sistema eleitoral. Já falou em passar a faixa, mas também em aceitar o resultado desde que as eleições sejam limpas, sem deixar claro o que quer dizer com isso. Do ponto de vista legal, como analisa essas falas? Todo cidadão, inclusive o presidente, pode professar a sua crença ou descrença nas instituições. A situação se altera visceralmente quando essa manifestação de descrença ocorre a partir de uma campanha discursiva arquitetada meticulosamente para atingir um processo eleitoral, não em sua conformação abstrata, mas já em curso.

E a situação se altera ainda mais quando o emissor dessa campanha de desinformação assume uma dúplice função de candidato e presidente da República. O conceito de transparência ou de pureza das eleições não depende do capricho pessoal de nenhum emissor, depende do formato decidido pelo Parlamento brasileiro um ano antes das eleições. Nesse sentido, arquitetar uma campanha de desinformação para substituir essas regras por caprichos pessoais é muito mais do que uma sugestão de melhoria do sistema. É uma tentativa de perturbar um processo eleitoral já em curso.

Há algum crime nisso? A integridade do processo eleitoral é um bem essencial ao Estado de Direito. Uma das cláusulas pétreas da Constituição é a periodicidade do voto. Os novos crimes contra o Estado de Direito também tutelam a integridade do processo eleitoral, e, assim, quando essa narrativa mentirosa industrialmente produzida atinge esse bem caro ao Estado de Direito, é possível que tenhamos um ilícito.

Se essa campanha contra a integridade do processo eleitoral vier acompanhada de uma condição, ou seja, “se o meu capricho não for atendido as eleições não ocorrerão”, pode ser que esteja realizado o delito de tentativa de abolição violenta do Estado de Direito. Porque esse método de agressão constituiria uma grave ameaça, um delito que todas as ordens jurídicas democráticas modernas conhecem.

O legislador brasileiro foi sábio ao mencionar que basta, nesse caso, a tentativa de abolição. Nenhum legislador esperaria a efetiva abolição do Estado de Direito para atuar. E esse é o dilema do direito penal. Ele tem de proteger o Estado de Direito e a democracia nem tarde demais, quando já não haverá mais o Estado de Direito a ser protegido, nem cedo demais, a ponto de garrotear a liberdade de expressão.

A frase “serão respeitados os resultados das urnas desde que as eleições sejam limpas”, dita por Bolsonaro no Jornal Nacional, é um exemplo do condicional que o sr. mencionou? Este é o exemplo mais límpido. Há métodos de impugnar eleições se houver suspeitas graves de fraude na contagem dos votos. Esses meios podem ser acionados por todos os candidatos que se sentirem prejudicados por alguma fraude identificada. O que não pode ser feito é substituir o conceito de transparência, que é da lei, por um conceito pessoal de transparência e colocar no horizonte uma ruptura na periodicidade do voto.

Como uma declaração dessa seria vista na Alemanha? Precisamente pelo passado que carrega, a Alemanha produziu o maior número de estudos a respeito da proteção do Estado de Direito por meio do direito penal. Isso porque, depois da debacle da República de Weimar (1919-1933) e com a edificação da Constituição alemã do pós-guerra, construiu-se um conceito que depois se tornou muito divulgado de democracia militante ou democracia combativa. Uma democracia que professa a sua fé, mas não descarta que haja inimigos internos acolhidos pela própria democracia e cujo desejo é apunhalá-la a partir de dentro.

A preocupação dos países em proibir determinados ataques às instituições do Estado de Direito não é proibir a adoção de uma estratégia de convencimento institucional a respeito de um novo modelo de Poderes, ou um novo modelo de Justiça eleitoral. O direito só entra em cena quando essas estratégias não se expressam mais em convencimento, mas em constrangimento da outra instituição. Quando há coação, grave ameaça e violência, todas as ordens jurídicas democráticas hoje proíbem essas condutas. Não teria dúvida em dizer que, tivesse o que vimos ocorrido em outros países, não só na Alemanha, mas em quase todas as democracias modernas, alguns tipos penais já teriam sido ativados.

Como vê a interlocução do TSE com as Forças Armadas para a eleição? Uma interlocução sobre o melhor desenho do sistema eleitoral, seja com as Forças Armadas, seja com outros setores da sociedade civil, seria, em geral, benfazeja. Ocorre que o que se vê não é um debate sobre o melhor sistema eleitoral. Qualquer alteração brusca de percurso a 20 dias das eleições pode ser mal compreendida, no sentido de demonstrar uma eventual fragilidade das regras. As sugestões podem compor o que será o próximo pleito eleitoral. Eleições limpas são as que respeitam a lei, não o capricho individual de agentes transitórios.

No 7 de Setembro, o presidente fez um comício que se misturou às comemorações da Independência. Como analisa o episódio? Naturalmente, há ali todos os elementos para que se mova uma ação por abuso do poder econômico. Porém, as chances de que essa ação prospere, seja pelo tempo que demanda esse tipo de investigação, seja por um caráter contraproducente que pudesse ter pela legitimidade popular de que goza o presidente, talvez indiquem que, apesar da realização formal de todos os pressupostos do abuso de poder econômico, uma ação dessa natureza não tenha como prosperar.

E a operação contra empresários que postaram mensagens a favor de um golpe em grupo de WhatsApp? Professar entre amigos autoritários com virulência não constitui ilícito. Há um exercício pleno da liberdade de expressar seus pensamentos antissistema. O que talvez esteja em causa seja a exteriorização dessas ideias em forma do financiamento de um projeto de ataque à integridade do processo eleitoral. Se as investigações revelarem a exteriorização dessas ideias autoritárias em projetos concretos que se destinam a agredir instituições do Estado de Direito, pode-se constituir um ilícito.

Esta eleição tem sido marcada por episódios de violência e ameaças. Muita gente vê em falas do presidente Bolsonaro, como a sobre “fuzilar a petralhada”, uma incitação à violência. Como avalia? Também houve esse debate na Alemanha, sobre como ligar movimentos discursivos que insuflam a população e os atos violentos efetivamente praticados quando um político foi assassinado após manifestações nas redes sociais que incitavam a violência contra ele.

Parece-me que a forma mais eficiente que o direito tem é punir já o discurso como uma incitação, não apenas o fato praticado —que, evidentemente, também será punido. Seria muito difícil criar um vínculo jurídico que pudesse responsabilizar o emissor desse discurso por todo e qualquer ato praticado por um cidadão, ainda que se possa indicar como um dos motivos do cidadão o discurso anteriormente proferido seja pelo presidente da República, seja por qualquer líder de partido.

No caso do “fuzilar a petralhada”, o sr. arriscaria uma opinião? Teríamos aqui uma incitação. Não é possível admitir que o presidente da República profira um discurso dessa natureza, apenas há que se distinguir o que é uma incitação punida por si mesmo e a punição do fato concreto.

Folha