Parte expressiva dos brasileiros rejeita democracia

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Foto: Miguel Schincariol/AFP e Evaristo Sá/AFP

Os resultados do primeiro turno causaram perplexidade pelas discrepâncias entre os números das pesquisas e o resultado final, pelo tamanho da votação de Bolsonaro e pelo crescimento da direita bolsonarista no Congresso. Esses temas vêm sendo discutidos à exaustão, mas uma pergunta ainda paira aqui e ali. Afinal, o brasileiro não dá importância à democracia?

A votação estrondosa de candidatos que exaltam a ditadura militar ou defendem o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) — além, é claro, do próprio Jair Bolsonaro — causou frustração nos intelectuais, na esquerda e no centro.

Parte dos apoiadores de Lula concluiu que faltou ao petista gritar mais alto para “mostrar ao povo” o risco autoritário que o Brasil corre com uma hipotética vitória de Bolsonaro. Outra ala, mais pragmática, chegou à conclusão de que grande parte do eleitorado, no fundo, não está nem aí para a democracia. Quer saber é de comer, trabalhar, pagar as contas.

“Para o eleitor, fascista é aquele que faz as coisas, e genocida é o irmão do Emicida”, ironiza um apoiador de Lula de primeira hora que vive da política. “Não adianta fazer assembleia com o pessoal do todes, tem de gastar sola de sapato e falar com o povo”.

A pesquisadora Esther Solano, que estuda o comportamento de eleitores como evangélicos e integrantes das classes C e D, expressou a mesma ideia de forma bem mais elaborada ao dizer, em entrevista ao GLOBO, que “o conceito de democracia é mobilizador para uma classe média e alta, mas está distante demais da realidade concreta de eleitores em situação econômica emergencial”. Para ela, parte do eleitorado também está aflita com questões morais como o aborto e a “ideologia de gênero”.

O mesmo aliado de Lula acha que o risco à democracia será um não assunto no segundo turno. Primeiro, porque Bolsonaro não teria forças para dar um golpe. Depois, porque ele acha que ganhará. Evidente que a situação é bem mais complexa, e nada disso impede o presidente da República de tumultuar o ambiente político se lhe for conveniente. Mas a noção de que o risco à democracia será um não assunto nesta eleição vem se consolidando entre os políticos.

Será mesmo?

Apesar da baixaria virtual dos últimos dias — com bolsonaristas acusando Lula de ser ligado ao satanismo, enquanto os lulistas disseminam vídeos de Bolsonaro na maçonaria para assustar os evangélicos —, fora das redes sociais a eleição nunca pareceu tão “normal”.

O que se vê nas duas campanhas são cenas de tradicional disputa democrática, com cada lado tentando enfileirar o maior número possível de apoios institucionais. Bolsonaro vestiu um terno bem passado, penteou os cabelos e saiu pelo Brasil negociando em gabinetes, fazendo promessas e prestando contas de seus apoios diante de microfones.

De seu lado, Lula reuniu a tropa nos bastidores para avaliar os erros e corrigir o rumo, enquanto diante das câmeras era cobrado a assumir compromissos.

Essa movimentação é consequência direta do primeiro turno. O fato de ter se tornado imperativo a qualquer político com algum projeto futuro assumir posição é, em si, um ganho para a democracia. Tirou das sombras quem andava escondido e será cobrado por seus atos.

Isso não quer dizer que o risco de degradação democrática tenha desaparecido. Como já constataram Steven Levitsky e outros autores, o autocrata 3.0 mina a democracia por dentro, enfraquecendo as instituições.

Bolsonaro já demonstrou inúmeras vezes que segue a cartilha. Agora mesmo, enquanto ele se apresenta como governante preocupado, seus aliados propõem uma CPI no Senado para investigar as pesquisas eleitorais.

Não se trata, portanto, de dourar a pílula, pelo contrário. Mas a história do segundo turno ainda está por ser escrita. Embora seja inevitável termos novos momentos de baixaria e jogo sujo, também é verdade que Lula e Bolsonaro agora estão sozinhos sob os holofotes, sem o escudo do candidato-laranja, da ameaça comunista, do voto útil ou do sigilo de cem anos.

Com tempo de sobra na TV e debates pela frente, terão de se enfrentar de verdade a respeito do orçamento secreto, da corrupção do PT, dos planos para a economia e para a educação.

Não que estejam loucos para fazê-lo. Mas o recado das urnas também deveria ser compreendido por aqueles que estão genuinamente preocupados com nossa democracia. A tarefa começa por cobrar de Lula e de Bolsonaro propostas coerentes, sem passar pano para populismo, autoritarismo e demagogia. Mais do que gritar pela democracia, é preciso praticá-la. Pode parecer pouco para quem está diante do abismo. Mas não se apresentou ainda uma alternativa melhor.

O Globo