
TRF1, em Brasília, tem sobrecarga por prefeitos buscarem justiça isenta
*Esta entrevista foi produzida para o Anuário da Justiça Federal 2019, que será lançado no Superior Tribunal de Justiça no próximo dia 21.
Vice-presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, o desembargador Kassio Nunes Marques entende que a corte precisa urgentemente entrar na onda da inteligência artificial, que tem aumentado a produtividade de cortes por todo o Brasil. A revolução, no entanto, esbarra na quantidade assombrosa de processos físicos que atulham os prédios do tribunal em Brasília: mais da metade dos cerca de 500 mil casos. Resolver essas duas questões é o desafio que a função impõe.
“Sem digitalizar o nosso acervo, não podemos ter inteligência artificial. E com o acervo que nós temos hoje, isso é um sonho”, afirma Kassio Marques, em entrevista ao Anuário da Justiça Federal 2019. “Primeiro vamos ter que digitalizar tudo. E com o acervo digitalizado, poderemos usar a inteligência artificial, baixar sensivelmente as demandas repetitivas e permitir que os magistrados se debrucem com mais vagar nas questões novas”, explica.
O acervo do TRF-1 é o maior entre os cinco TRFs, em situação até certo ponto compreensível: trata-se do maior TRF, que engloba 13 estados e o Distrito Federal e que, por ser localizado em Brasília, sede da União, permite que qualquer pessoa de qualquer estado possa litigar ali. O problema é que a digitalização que caminha a passos largos em outras regiões ainda engatinha na 1ª Região.
O vice-presidente define a sobrecarga da Justiça Federal em primeira e segunda instância como “fenomenal” e explica como a situação é agravada: “a gente vem sustentando uma infinidade enorme de ações de todo o Brasil e isso tem sobrecarregado as varas do Distrito Federal. Os prefeitos preferem entrar com ação em Brasília para evitar vendetas paroquianas”.
Leia a entrevista:
ConJur — Qual a prioridade da sua gestão na vice-presidência?
Kassio Marques — O CJF e o CNJ têm uma recomendação de que os tribunais regionais federais façam uma divisão para que os presidentes fiquem responsáveis, em suas gestões, pela administração e os vice-presidentes foquem suas atuações na jurisdição. Estamos seguindo essa recomendação desde abril e minha parte é a jurisdicional. O início desse trabalho foi claudicante porque as coisas estão um pouco desorganizadas em razão da falta de espaço do tribunal, mas estamos trabalhando.
ConJur — Alguma mudança da forma de trabalho?
Kassio Marques — Eu já tinha uma metodologia de trabalho de produtividade individual no meu gabinete, que estou adotando também nesse trabalho. Os meus assessores e colaboradores todos têm uma meta. Estou tentando explorar ao máximo esse momento, procurando usar a criatividade para reduzir nosso estoque. Temos uma enormidade de processos que estão sobrestados e que não deveriam mais estar sobrestados, pois tratam de temas que já foram julgados.
ConJur — A implementação de inteligência artificial está num futuro próximo?
Kassio Marques — O Supremo tem um software muito bom que foi desenvolvido para ele, o TJ-MG e o TJ-RO também têm. Muitos tribunais estão começando e nós não podemos deixar de trabalhar com esse tipo de sistema. Hoje temos softwares com verbetes, com expressões que identificam duas mil demandas da proposta de modelo, fazem um preenchimento. Agora, temos um problema aqui no TRF-1: sem digitalizar o nosso acervo, não podemos ter inteligência artificial. E com o acervo que nós temos hoje, isso é um sonho.
ConJur — É necessário fazer a digitalização de tudo antes.
Kassio Marques — Primeiro nós vamos ter que digitalizar tudo. É uma luta desta gestão da vice-presidência. Estou encaminhando um projeto para a presidência, para análise da digitalização do nosso acervo, sobre como vamos nos sair aqui. Com o acervo digitalizado, poderemos usar a inteligência artificial, baixar sensivelmente as demandas repetitivas e permitir que os nossos magistrados se debrucem com mais vagar
nas questões novas, mas é preciso avaliar como fazer isso.
ConJur — Quais os principais temas dos processos que mais abarrotam o tribunal?
Kassio Marques — A maioria que enviamos para os gabinetes tratavam de desaposentação, tema que já foi julgado pelo STF e não tinha sentido mais os processos estarem aqui no tribunal. Agora começamos a selecionar os que versam sobre correção monetária. Temos 18 mil processos do tipo. Devemos produzir até metade de setembro, pelo menos, só nessa matéria correção monetária, talvez 28 mil decisões. Correção monetária é uma questão que eu achei que era, na maioria das ações, caudatária de vários tipos de pedidos. Mas para minha surpresa, mais de 60% das ações tratam somente sobre correção monetária com o mesmo pedido. Então na avaliação destes processos certamente vamos baixar cerca de 14 mil em menos de um mês. E isso além de reduzir o acervo do TRF-1 vai contribuir para que os processos baixem para a origem e as pessoas tenham satisfeitos os seus direitos.
ConJur — E sobre a questão dos precedentes?
Kassio Marques — Eu estou montando também um núcleo de gerenciamento de precedentes. Já criamos uma resolução dentro do tribunal em que os julgadores das turmas podem delegar poderes ao juiz do grupo, que é o Rodrigo Godoy. Nesse caso de desaposentação, por exemplo, eles julgam um processo que é representativo da controvérsia e delegam o poder. E esses processos não vão mais para os gabinetes, já vão para o núcleo de gerenciamento, onde o juiz faz a adequação e dá baixa também. Enquanto isso não chega, a gente teve o cuidado de encaminhar esses processos para a secretaria, conversar com os coordenadores das turmas. Por isso que é possível fazer julgamentos em sessões extraordinárias e mutirões onde são julgadas 1.200 ações sobre um mesmo tema. Estamos mandando tudo triado e no ponto. Eles colocam só o modelo, já que são todos iguais, passam uma caneta ótica, lançam e o processo está pronto.
ConJur — Por isso que algumas turmas têm feito sessões extraordinárias que julgam de uma vez mais de mil processos sobre o mesmo tema?
Kassio Marques — Sim, dentro desse trabalho de seleção de processos, estamos encaminhando muitos para as turmas. Montei uma estrutura e, nesse núcleo, aproveitamos todos que são bacharéis em Direito para se envolver no trabalho. Minha chefe de gabinete faz a triagem junto com um outro assessor e ficam três ou quatro colaboradores para inserir os processos no sistema. Este núcleo está fora da estrutura do tribunal, foi criado com muito esforço para tentar colocar o aproveitamento total de tudo o que a gente dispõe. Como resultado inicial, começamos a trabalhar em 6 de junho e, somente esse grupo, já produziu 22.200 decisões até o início de agosto. A situação é tal que os órgãos públicos e a Procuradoria Regional da República da 1ª Região estão pedindo para que a gente diminua o ritmo porque eles não estão conseguindo acompanhar. Mas minha meta é, realmente, fazer uma produção fora do padrão.
ConJur — O problema de déficit de servidores é maior do que esperava encontrar?
Kassio Marques — É uma situação muito séria e que vai piorar pois, infelizmente, não temos perspectiva de realização de concurso. A emenda que congelou os gastos públicos nos impõe para o orçamento de 2019 uma redução de quase 24% das despesas. Então praticamente um quarto das pessoas que você está vendo circulando vai embora. Provavelmente, todos os contratos do tribunal vão ser revistos, o que puder ser licitado novamente vai ser. Também poderemos rever o horário de funcionamento do tribunal, cortes de estagiários, tudo o que possa evitar medidas mais traumáticas, porque é preciso atuar com a clareza da escassez de recursos. Mas estamos tentando, nessa parte, socializar o debate e buscar soluções.
O problema é que, apesar de tudo isso, precisamos avançar. Eu já estive com o ministro Noronha [então corregedor nacional de Justiça, atualmente presidente do STJ] e o ministro Toffoli [presidente do STF] e temos externado a eles que o TRF-1 precisa trabalhar com inteligência artificial. O tribunal tem muita matéria repetitiva, principalmente no Direito previdenciário.
ConJur — Como está a situação do projeto para construção de uma nova sede para o Tribunal?
Kassio Marques — Foi liberada uma determinada verba, estamos tentando atualizar e adaptar o projeto, dentro da apertada situação orçamentária que temos, e correndo para conseguir concluir ao menos um dos edifícios até o final do ano. Precisamos disso porque não temos mais espaço aqui no TRF-1. Temos três ou quatro prédios e um acervo físico de processos muito grande. Estamos na mesma situação que o STJ viveu antes da digitalização. Os prédios começam a passar por problemas estruturais e não temos espaço. Só em matéria previdenciária, de competência delegada, praticamente tudo é processo físico. Então devemos ter metade de todas as dependências do tribunal, hoje, ocupadas por processos. É muito complicado.
ConJur — Como está a situação dos IRDRs?
Kassio Marques — Os IRDRs estão no núcleo de gerenciamento de precedentes. Nós criamos esse núcleo de gerenciamento para identifica-los, um núcleo de inteligência processual. Abrimos o primeiro no Distrito Federal, mas estamos abrindo outros semelhantes em Minas Gerais e no Piauí. A ideia é termos um núcleo de inteligência em cada um dos estados abrangidos pela 1ª Região da Justiça Federal. A função principal é promover com mais facilidade uma comunicação entre eles e o tribunal sobre o surgimento de demandas repetitivas.
ConJur — Esses núcleos fazem essa triagem para saber o que precisa ser resolvido.
Kassio Marques — A partir do momento em que esse núcleo tem conhecimento de que em Minas Gerais há um concurso ou uma prova do Enem que por alguma razão vieram 2 mil ou 3 mil ações devolvidas, no primeiro agravo de instrumento no tribunal, nós podemos fazer um IRDR que pacifica, extingue estes processos. E o melhor, no próximo ano, no próximo concurso, o problema que suscitou estas ações não existirá mais, porque a administração vai ter que se adequar. E até lá o STJ já deve ter julgado o tema referente a esse IRDR, o que também já resolve o problema.
ConJur — Dar decisões antes do STF ou STJ julgarem os IRDRs gera desconforto para os magistrados?
Kassio Marques — De forma alguma. Na realidade o que a gente mais quer nesse momento é a uniformização da jurisprudência. Então o IRDR é um caminho rápido. É como se eu encaminhasse na vice-presidência um repetitivo da controvérsia. Ele é um processo destacado que força o STJ ou o STF a olhar com mais atenção para aquela demanda. O IRDR é para chamar a atenção, para subir um recurso que vai representar a decisão para milhares de processos. Quanto mais rápido o STF ou o STJ julgarem essa matéria, melhor para nós. Passa a ser um fator inibitório, as demandas não se repetem mais no tribunal.
Inclusive, a finalidade do núcleo de gerenciamento de precedentes também é fomentar. Quando é identificado um processo deles a gente cria um modelo, prepara toda a documentação e eu converso com seis desembargadores da sessão, fomentando para que cada um deles espalhe o IRDR, porque nós não temos esse diálogo tão fácil com a advocacia. Então esse núcleo faz isso.
ConJur — O que acha, também, sobre as câmaras previdenciárias?
Kassio Marques — Nosso grande problema para aumentar as câmaras é a falta de recursos para investimento, mas o impacto delas tem sido grande e extremamente benéfico para o tribunal. Posso lhe dizer que a 1ª Seção, de processos previdenciários e de servidores, dois anos atrás, recebia 800 recursos por mês. Nós chegamos a ter semanas em que recebemos uma média de 2 mil recursos. E 80% dessas demandas são previdenciárias. O aumento disso foi em virtude do julgamento das câmaras previdenciárias. Sob a questão da visibilidade, o impacto foi muito positivo, estamos trabalhando com o jurisdicionado mais hipossuficiente, sem falar que estamos levando o problema para ser discutido perto do advogado e perto do jurisdicionado.
Tivemos um grande problema anos atrás, que foi a criação dos Juizados Especiais Federais (JEFs) depois da Constituição e faltou quem fizesse esse diálogo. Então até hoje se aplica a norma pura da Constituição, que o recurso de competência delegada vem do TRF. É a ação do juiz chamado mais hipossuficiente, que tramita na competência delegada, onde nem sempre há o interesse em se julgar porque não entra na produtividade do tribunal. Só quando tem um tempo esse magistrado julga o previdenciário, aí vai para o TRF que ainda vai para o STJ.
Por conta disso, essas ações vinham demorando mais de dez anos para serem transitadas em julgado e às vezes são referentes a um salário maternidade que só vem quando a criança já está completando 15 anos de idade. Por isso que as câmaras são importantes. Elas pegam esse acervo e começam a resolver as demandas. E no futuro precisamos pensar e resolver como vamos trabalhar com isso, talvez de uma interpretação à Constituição ou aparelhando os juizados especiais para absorver essa parte dos processos.
ConJur — O senhor é favorável à criação de novos tribunais regionais federais ou do aumento de números de desembargadores e servidores para cada um destes tribunais?
Kassio Marques — Sou favorável a qualquer uma das duas medidas, qualquer coisa. Aqui as pessoas estão adoecendo porque não conseguem trabalhar para suprir a demanda. Não tem um dia em que eu não assine 500 decisões. Ontem assinei 1.400 decisões. Você vai me perguntar como eu consigo assinar tudo isso. A maioria são repetitivas, eu criei um modelo e não tenho mais o que revisar, deixo para revisar as outras. Mas a quantidade é enorme e um dia isso tem que mudar. Alguém vai falar “olha a saúde está chamando mais alto”, um dia a família vai reclamar e as coisas terminam a se acumular num determinado momento. Temos poucos desembargadores para a quantidade de processos.
ConJur — Em 2017, o tribunal cassou muitas liminares que tinham suspendido decisões do governo. Os magistrados da 1ª instância não se incomodam por perderem o protagonismo dessas decisões?
Kassio Marques — Eu acho justamente o contrário, acho que o protagonismo vem da primeira instância. O TRF-1 ainda está com jurisprudência clássica, equilibrada, com um corpo de magistrados de muita experiência, vários ex-presidentes e ex-vice-presidentes do tribunal integrando o colegiado, ou seja, magistrados que sabem como funciona a administração. Então, assim como tem aquela coisa da idade que ajuda na Câmara dos Deputados e no Senado, no tribunal acontece também. E o Brasil precisa dessa heterogeneidade.
Se todos nós fôssemos ativistas eu acho que o Judiciário já teria sido rebaixado ao que era ainda na época de Montesquieu, em que não existia essa igualdade e o Judiciário era subordinado ao Executivo. Então esse é um sistema interno, dentro da formação da jurisprudência, com pesos e contrapesos. E por vezes uma decisão é considerada ativista e o tribunal suspende. O garantismo, atualmente, está sendo criticado, quando nada mais é do que aplicar a lei maior, que é a Constituição Federal.
ConJur — O senhor enxerga isso como uma distorção do sistema?
Kassio Marques —Eu tenho uma influência europeia. Mesmo vindo da advocacia, que me faria um vanguardista, ou ativista, eu tenho mestrado na Europa e a realidade europeia é completamente diferente. Para você ter uma ideia, tivemos um repetitivo que foi julgado de repercussão geral no Supremo sobre o direito à saúde, a centralização deste direito social através do Judiciário. A Espanha não tem uma decisão sobre o tema. Não é porque a Justiça funcione à perfeição lá. De fato o sistema de saúde é muito bom lá, mas é que não entra na cabeça do espanhol que um juiz possa conceder um medicamento numa decisão judicial. Essa mistura, os dois extremos, porque o Brasil é um extremo, isso nos coloca numa posição de um pouco mais alta contendura, de fazer uma reflexão de que esse direito deve ser aplicado sim, mas tem limites. E aí o STF está se debruçando sobre isso.
É possível a concessão de um medicamento sem passar pela Anvisa, por exemplo? É o Supremo que vai dizer. Então estas medidas são uma influência ou do direito europeu, da vida, do pensamento ao contendor, pensando lá na reserva do possível, criado pelo Direito alemão.
ConJur — Quais são os gargalos que o senhor vê hoje nas seções judiciárias da primeira instância da 1ª Região?
Kassio Marques — Há um julgamento bastante representativo, que inicia a discussão sobre o fechamento das varas em fronteira. Porque há uma visão, de um lado, de que é importante haver uma vara na fronteira porque lá há tráfico de pessoas, tráfico de animais, de entorpecentes, de armas. Há uma outra visão que diz o seguinte: o juiz não é força nacional, não é da polícia federal, ele é inclusive para ficar distante. Pode eletronicamente decidir, porque ele não é para ser visto, principalmente no caso de contrabando de armas e tráfico de entorpecentes. Porque ele pode até ser exterminado. Você vê que há duas opiniões sobre o mesmo fato.
Mas a realidade é que a maioria destas varas tem 400 processos, 300 processos. E num momento de crise econômica, essas varas são as primeiras a serem visadas. Porque estão na divisa, têm um fluxo de processos mínimo. O tribunal vai começar a refletir se elas devem ser mantidas ou recambiadas, por exemplo, para o DF. O TRF da 1ª Região tem um detalhe que é o fato de as varas da capital terem uma sobrecarga fenomenal. Tudo que eu lhe falei de regulamentação de direito econômico, termina aqui. Porque ainda se tem aquela ideia do mandado de segurança ser entregue na residência da autoridade registrada. O STJ já mudou isso, você pode entrar com o MS em qualquer lugar, mas há essa cultura. Então tudo se ajuíza aqui.
ConJur — Aumenta muito a demanda por essa cultura.
Kassio Marques — Aí convivemos com um outro problema. Eu tenho um cidadão que mora no Rio Grande do Sul e ele pode pleitear a aposentadoria dele em Brasília. Eu tenho uma empresa que trabalha na área portuária do Porto de Santos (SP) que ajuíza uma ação aqui. Então nós temos uma eleição do foro muito forte. Principalmente em termos de matéria tributária. Mas estamos vivendo também uma questão séria, principalmente, em relação aos municípios. Digamos que um município foi inscrito em algum órgão de proteção ao crédito. Se isso vazar, se transforma num problema político, porque vai atrasar a folha de pagamento e a imagem do prefeito. Ele então ajuíza uma ação tributária.
Se ajuíza lá, o processo é público, isso vai ser divulgado pelos jornais e portais da internet em minutos. O que ele faz? Ajuíza na capital federal. Então a gente vem sustentando uma infinidade enorme de ações de todo o Brasil e isso tem sobrecarregado as varas do DF. Os prefeitos preferem entrar com ação em Brasília para evitar vendetas paroquianas.
Do Conjur