Militares golpistas imitavam falas de Bolsonaro

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Foto: Caio Rocha/iShoot/Agência O Globo

Mensagens apreendidas pela Polícia Federal no celular do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL), mostram que o grupo de militares que defendeu um golpe de Estado, seja diretamente ao oficial ou em um grupo de WhatsApp, usava termos frequentemente adotados pelo próprio ex-presidente. Na maior parte do período analisado pelo relatório da PF, Bolsonaro permaneceu publicamente em silêncio, o que não impediu a reprodução dos ataques.

A empreitada golpista, conforme revelam as mensagens, se baseava em um tripé disseminado pelo ex-presidente e auxiliares próximos ao longo do seu mandato: supostas ilegalidades praticadas por ministros dos tribunais superiores, desconfiança das urnas eletrônicas e a interpretação, rechaçada pela Supremo Tribunal Federal (STF), de que as Forças Armadas estão autorizadas a atuar como um “poder moderador”, baseada em uma leitura distorcida do artigo 142 da Constituição.

Nos dois meses em que ficou em isolamento no Alvorada após perder a eleição, Bolsonaro deu uma única declaração de teor golpista para seus apoiadores, no dia 9 de dezembro, quando afirmou que ainda era o “chefe supremo das Forças Armadas” e que “quem decide para onde vão as Forças Armadas são vocês”. Àquela altura, Cid, e o coronel Jean Lawand Junior, conversavam pelo WhatsApp sobre a possibilidade de Bolsonaro determinar uma intervenção militar.

“Kd (cadê) a ordem, CID, pelo amor de Deus!!! Convença o 01 (Bolsonaro) a salvar esse país”, escreveu Lawand no dia 7 de dezembro. “CID, pelo amor de Deus, o homem tem que dar a ordem. Assessore e dê-lhe coragem”, voltou a pedir o coronel em 10 de dezembro, um dia após a declaração de Bolsonaro no Alvorada. Cid, então, respondeu: “Muita coisa acontecendo… passo a passo…”, ao que Lawand exclamou: “Excelente!!!”.

Outro vetor de mensagens de teor golpista foi o grupo “…Dossss!!!”, que incluía militares da ativa e do qual Cid também fazia parte. Em 27 de novembro, um dos contatos afirma que “a ruptura institucional já ocorreu há muito tempo”. Em 7 de setembro, Bolsonaro havia listado momentos de ruptura democrática, como no golpe de 1964, e afirmado que a “história pode se repetir”.

Ataques a Alexandre de Moraes, do STF, também foram disseminados no grupo. “Vai ter careca arrastado por blindado em Brasília?”, escreveu um dos integrantes, em 29 de novembro, repetindo uma forma depreciativa de se referir ao ministro feita por grupos bolsonaristas. Como mostrou um levantamento feito pelo GLOBO em janeiro deste ano, Bolsonaro fez um ataque grave à democracia a cada 23 dias no cargo. Moraes foi um dos principais alvos de Bolsonaro. Em 7 de outubro, o ex-presidente acusou o ministro de ter cometido “crime” por ter quebrado o sigilo telemático de Cid. O auge foi em setembro de 2021, quando o então presidente afirmou que não cumpriria mais nenhuma decisão judicial do magistrado — depois, ele acabou recuando.

Menções deturpadas à Constituição foram outro mecanismo usado. No dia 21 de dezembro, um membro do grupo afirma: “Se o Bolsonaro acionar o 142, não haverá general que segure as tropas. Ou participa ou pede para sair”. Como o STF já decidiu, não há brecha possível no artigo 142 da Carta que permita a leitura de que as Forças Armadas são um poder moderador e podem atuar em conflitos entre Poderes.

A determinação não impediu Bolsonaro de citar o artigo em estímulos a rupturas. Em maio de 2020, enquanto atacava a Corte por decisões tomadas na pandemia, o ex-presidente publicou nas redes uma live de Ives Gandra com o título “A politização do STF e a aplicação pontual da 142”.

Na temporada de isolamento no Alvorada, o ex-presidente até chegou a sair duas vezes após a fala em 9 de dezembro, mas não deu novas declarações. O silêncio foi rompido em 30 de dezembro, com a transmissão de uma live horas antes de embarcar para a Flórida, nos EUA. “Busquei dentro das quatro linhas, dentro das leis, respeitando a Constituição, uma saída para isso aí. Se tinha uma alternativa para isso, se a gente podia questionar alguma coisa ou não questionar alguma coisa, tudo dentro das quatro linhas”.

A referência às “quatro linhas” não aparece em mensagens de WhatsApp, mas em outro arquivo encontrado no celular de Cid. Uma minuta apócrifa que sugere a adoção de estado de sítio diz que a medida seria necessária para a “restauração do Estado Democrático de Direito no Brasil, jogando de forma incondicional dentro das quatro linhas”.

Em 21 de dezembro, enquanto Bolsonaro estava sem se manifestar publicamente, fora a breve fala a apoiadores do dia 9, Lawand se queixou de que a intervenção militar não viria. “Soube agora que não vai sair nada. Entregamos o país aos bandidos”, escreveu o oficial. Cid respondeu: “Infelizmente”. Anteriormente, o ajudante de ordens já havia dito ao interlocutor que Bolsonaro não havia determinado uma ação militar porque não confiava no alto comando do Exército.

No mesmo período em que Lawand e Cid conversavam, de acordo com o relatório da PF sobre as mensagens encontradas, militares da ativa e da reserva reunidos em um grupo de WhatsApp intitulado “Dosssss!!!” discutiam a possibilidade de as Forças Armadas darem um golpe de Estado mediante uma ordem de Bolsonaro. Entre os oficiais que integravam o grupo havia comandantes de unidades do Exército e até instrutores de escolas militares.

As mensagens do celular de Cid foram reveladas na quinta-feira passada pela revista Veja e tornadas públicas na sexta pelo ministro Alexandre de Moraes. Após a divulgação das mensagens, a defesa do ex-presidente divulgou uma nota em que afirma que ele “jamais participou de qualquer conversa sobre um suposto golpe de Estado”.

Ainda segundo a defesa de Bolsonaro, o tenente-coronel Cid, como ajudante de ordens, “recebia todas as demandas que deveriam chegar ao presidente da República”, o que fazia com que seu celular se transformasse em uma “simples caixa de correspondência que registrava as mais diversas lamentações”.

Quanto às mensagens escritas por militares da ativa, o Exército informou que avaliará o caso para adotar as medidas cabíveis. “Ressalta-se que o Exército Brasileiro tem pautado sua conduta pela legalidade e transparência e vem contribuindo com as investigações em curso, sempre observando os princípios do contraditório e da ampla defesa”, afirmou, em nota.

O Globo