Planeta tem os dias mais quentes da história

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Foto: Kevin Dietsch/Getty Images/AFP

Nunca se viu um verão e um inverno como esses na Terra, onde os habitantes das duas metades divididas pelo Equador sentem no ar, na água e no solo — além da pele — os efeitos de uma inédita escalada de eventos climáticos extremos. O mais clamoroso ressoou em toda parte não um, mas três dias seguidos: medida pela Administração Oceânica e Nacional Oceânica dos Estados Unidos (Noaa), a temperatura média do planeta, de 17,01 graus na segunda-feira 3, foi a mais quente jamais registrada — um recorde batido na terça e na quarta, com 17,18 graus. Parece pouco, mas jamais a atmosfera terrestre esteve tão quente.

Os cientistas, alarmados, avisam que é grande a chance de novas máximas serem registradas ao longo das próximas seis semanas, um sinal de que a luz solar está sendo muito mais absorvida do que irradiada para o espaço — decorrência do efeito estufa. O célebre vilão é alimentado principalmente pelo volume de dióxido de carbono (CO2) produzido por atividades humanas como a queima de gasolina e outros combustíveis fósseis. Em quantidades normais, o gás se dissipa na natureza. Em excesso, como vem acontecendo desde a Revolução Industrial, no século XIX, o CO2 retém o calor e a superfície global se torna superaquecida, como comprovaram os termômetros nos últimos dias. E a sequência de notícias incandescentes não acaba aí: medições no início de junho confirmaram o início do El Niño, fenômeno periódico e natural que consiste no aquecimento das águas do Oceano Pacífico e que, diante das mudanças climáticas em curso, pode ganhar ainda maior intensidade e adicionar até 2,5 graus ao planeta já com febre alta. O superaquecimento do globo se faz sentir de maneira dramática em todos os continentes (veja o quadro). No verão do Hemisfério Norte, Portugal e Espanha sofrem com a pior estiagem em 1 200 anos, uma amostra radical do padrão de chuvas cada vez mais enxuto em todo o Mediterrâneo, região que compreende a Europa e a África e onde vivem 500 milhões de pessoas. A seca que se propaga pelo sul europeu não só causa estragos econômicos como afeta o consumo cotidiano de produtos que são ícones nacionais. A indústria espanhola de azeite, fornecedora de metade do óleo consumido no planeta, está produzindo 50% menos por causa das oliveiras esturricadas, elevando os preços ao maior patamar em 25 anos. Nas vinícolas espanholas, italianas e francesas, as uvas ficaram mais raras e a mudança no tempo afeta cada vez mais negativamente a oferta de vinhos. Na aromática cidade de Grasse, na Riviera Francesa, dotada de um privilegiado microclima que a faz grande fornecedora de flores para os perfumistas da França desde o século XVII, a seca deve cortar pela metade a colheita deste ano e até inviabilizar o cultivo de algumas espécies.

A canícula dos últimos dias pôs para ferver metrópoles e vilarejos em quase todos os pontos do planeta (veja o mapa). Na Índia, onde os recordes de calor vêm se sobrepondo em velocidade estonteante, 170 pessoas morreram em decorrência das altas temperaturas desde que o verão de lá começou. Estados Unidos e México sofrem os efeitos de uma “cúpula de calor”, fenômeno que impede a circulação de ar e a formação de chuvas e que há três semanas está estacionada sobre um vasto território. No Texas, a combinação de alta umidade e ar quente elevou a sensação térmica a insuportáveis 51 graus e fez rachar o asfalto em ruas de Houston, a maior cidade do estado, além de lotar os prontos-so­corros de crianças e idosos passando mal. Por causa da umidade e do calor quase sem precedentes, hospitais deste estado e da Flórida internaram pacientes com malária, uma doença tipicamente tropical.

Lugares onde a temperatura está normal para a época do ano encaram outro tipo de problema: a fumaça. Em dois momentos até agora, o famoso skyline de Nova York se viu encoberto por uma espessa névoa e a cidade registrou o mais alto índice de poluição do mundo (situação que se repetiu em Chicago e Detroit), um cenário que soa distópico e tem origem nos incêndios em florestas boreais do vizinho Canadá, os maiores da história do país. Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) puseram 120 milhões de americanos em alerta de ar insalubre por excesso de partículas. “O que prevíamos acontecer no longo prazo está se concretizando. Vamos ter de nos adaptar”, alerta José Marengo, coordenador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).

Mesmo a porção sul do planeta, que deveria ter um refresco com a chegada do inverno, experimenta termômetros enlouquecidos. Este maio e junho já são considerados os mais quentes de que se tem registro no hemisfério, contribuindo para a intensificação da estiagem que grassa em vários países. No Uruguai, o colapso do sistema hídrico atingiu tamanha proporção que o governo de Montevidéu, onde os reservatórios estão secos, apelou para a distribuição de água com maior teor de sal nas torneiras, o que desencadeou protestos da população e pedidos de desculpas do atual presidente, Luis Lacalle Pou, e do ex, José Mujica, que se penitenciou da falta de investimentos preventivos. Na Argentina, a pior seca em um século deve impor perdas de 20 bilhões de dólares ao setor agropecuário e custar 3 pontos percentuais do produto interno bruto, empurrando o país, ultraendividado e com inflação de mais de 100%, para uma recessão. No Brasil, Bahia, Minas Gerais, Amazonas e Pará padecem de seca prolongada, como mostra o Monitor de Secas da Agência Nacional de Águas, enquanto o cerrado, no Centro-Oeste, enfrenta os piores incêndios em treze anos.

A mudança climática se amplifica nas regiões polares, que aquece duas vezes mais rapidamente do que o resto do planeta. A perenemente gelada Antártica, em pleno inclemente inverno polar, registra temperaturas tidas como impossíveis, como os 8,7 graus cravados na base científica de Vernadsky, pertencente à Ucrânia, nos últimos dias. O gelo marinho que rodeia o continente está 2,6 milhões de quilômetros quadrados menor, o pior índice para a temporada desde que ele começou a ser medido, em 1979. No outro extremo, o Ártico, a temperatura está 10 graus acima do normal, o que fez derreter em apenas dois dias todo o gelo que cobria a Ilha de Nares, na Groenlândia. Os cientistas estimam que o Polo Norte simplesmente vai parar de ter gelo no verão até 2030, dez anos antes do previsto.

Não faz sentido relacionar cada catástrofe meteorológica ao efeito estufa, visto que o clima é regido por uma série de fatores imprevisíveis, como as correntes dos oceanos e da atmosfera. Mas é consenso entre os especialistas que o aquecimento desencadeado pela ação humana tem papel determinante na ocorrência mais frequente dessas condições — certeza obtida em pesquisas com supercomputadores capazes de simular modelos com o mundo superaquecido da atualidade e nas condições climáticas pré-Revolução Industrial. Com base nessas simulações, estima-se que o excesso de emissões de CO2 tornou cinco vezes mais provável o sufoco da “cúpula de calor” parada sobre a América do Norte. No caso da Índia e do Paquistão, nações particularmente vulneráveis a desastres naturais devido à sua localização, as chances de eles acontecerem se multiplicaram por 100. O mesmo calor retido na atmosfera que provoca secas e altas temperaturas também alimenta tempestades, já que, para cada aumento de 1 grau na temperatura, a atmosfera passa a reter 7% mais vapor d’água — motivo pelo qual a mesma Índia e a vizinha China passam neste momento por devastadoras inundações. “Há uma inequívoca multiplicação de eventos extremos”, afirma Robert Scheller, especialista em manejo florestal da Universidade da Carolina do Norte.

A contenção da espiral de catástrofes está no cerne do Acordo de Paris, de 2015, assinado por 195 países, que fixou o limite de aumento seguro da temperatura média global em relação ao período pré-industrial em 1,5 grau. Para parar por aí, o mundo precisaria reduzir pela metade as emissões de CO2 até 2030 e zerá-las até meados do século, uma tarefa que não é impossível, graças às tecnologias disponíveis, mas de alta complexidade e custo elevadíssimo, além de exigir dos governos um tremendo nível de comprometimento, sem falar nas mudanças de hábitos que todo mundo conhece, mas poucos praticam.

No momento, há 66% de chance de o 1,5 grau ser ultrapassado até 2027. “Conter as emissões é o maior desafio que a humanidade já enfrentou”, diz Daniel Swain, pesquisador da Universidade da Califórnia. A mesma semana de recordes de tom apocalíptico trouxe duas notícias que aliviam o drama. China e Estados Unidos, os dois maiores poluidores do planeta, devem se sentar para discutir o assunto na anunciada visita que John Kerry, enviado especial para o clima de Joe Biden, fará a Pequim em breve. E novas doações vão injetar milhões de dólares no combate ao desmatamento da Amazônia, um bioma fundamental na distribuição de chuvas em todo o continente, que, a se manter o nível atual de destruição, pode perder 11 800 quilômetros quadrados de mata até o fim do ano — o equivalente a dez cidades do Rio de Janeiro. A corrida a favor do planeta se acelera.

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