Ruralistas e evangélicos querem acabar com a FUNAI
O empurra-empurra no governo de Jair Bolsonaro (PSL-RJ) sobre onde ficará a Funai (Fundação Nacional do Índio) é o capítulo mais evidente de um processo de estrangulamento vivido pelo órgão nos últimos anos e que se acentuou a partir da posse de Michel Temer. O pano de fundo são pressões políticas que vêm de dois grupos distintos, às vezes com interesses em comum, os ruralistas e os evangélicos. Esses lobistas, muitos dos quais são parlamentares, agora enxergam no governo Bolsonaro a chance de dar a enquadrada definitiva no órgão a fim de que ele dê uma guinada na política indigenista em direção a um projeto maior que levaria à desterritorialização do índio.
Bolsonaro já chamou esse objetivo de “emancipação”, a mesma expressão usada na ditadura militar (1964-1985) em um projeto formatado mas depois arquivado em 1978 pelo então ministro do Interior, Rangel Reis, após uma intensa reação da sociedade civil. A ideia bolsonarista é permitir que, em algum momento, o índio receba títulos das terras tradicionais para que possa arrendá-las ou “até mesmo vendê-las”, como declarou Bolsonaro. A venda é proibida por toda a legislação nacional, já que as terras indígenas são registradas em cartórios em nome da União. Tentar algo nesse sentido deverá provocar no Judiciário uma avalanche de processos e acusações de improbidade a serem movidos pelo Ministério Público Federal, mas Bolsonaro parece indiferente a esses detalhes da democracia.
A crítica mais comum é simples de ser entendida. Uma vez que o índio tenha um título da terra, ele pode ser subornado ou pressionado com violência por fazendeiros da região para vendê-la. O comércio da terra seria o fim do núcleo familiar indígena e, a médio prazo, o fim da própria etnia, que teria que ser deslocada para a periferia das grandes cidades ou passar a trabalhar como mão de obra barata da agroindústria. O plano de arrendamento também seria a retomada dos antigos projetos de “renda indígena”, foco de inúmeros escândalos de desvios e corrupção e que estão no centro da extinção do SPI (Serviço de Proteção), em 1967, substituído pela Funai. O que aconteceu foi que agentes do governo, incluindo militares durante a ditadura, passaram a comercializar as riquezas dos índios, em nome dos índios, mas manipulavam a verba como bem entendiam.
Os grupos de pressão trabalham com agendas semelhantes às ideias de Bolsonaro. Os ruralistas querem impedir a Funai de fazer novas demarcações de terras e trabalham para que ela permita “parcerias” com indígenas, na forma de arrendamentos, em especial no Centro Oeste. Seria uma forma sutil porém devastadora, a longo de prazo, de descaracterização de uma unidade indígena. Pressionam também para começar uma rediscussão sobre o tamanho de algumas terras indígenas já demarcadas, no que seria considerado o maior ataque aos direitos dos índios desde o fim da ditadura. Estão na mira, por exemplo, a terra indígena Karipuna, em Rondônia, e a terra indígena Apyterewa, da etnia parakanã, ambas já demarcadas e homologadas pela Presidência da República, mas invadidas em vários pontos. É uma espécie de política de terra arrasada.
Entre os evangélicos, a pauta é pressionar a Funai a permitir o aumento da evangelização dos indígenas, em especial na Amazônia. A Funai resiste a autorizar que grupos evangélicos possam realizar supostos “estudos” entre indígenas, e por isso é alvo de acusações de pastores e da bancada evangélica.
O cenário de conflagração no campo indigenista é agravado por declarações confusas e muitas vezes difamatórias do presidente eleito, Jair Bolsonaro. Ele, por exemplo, repetidamente retrata a demarcação da terra indígena Yanomami, em Roraima, como parte de um sinistro plano de internacionalização da Amazônia. Porém, nunca explica que ela foi homologada com seus 9,4 milhões de hectares após uma intensa campanha da sociedade civil por um presidente de direita ou, vá lá, de centro-direita, Fernando Collor, e por um militar ministro da Justiça, o coronel da reserva Jarbas Passarinho (1920-2016), um dos golpistas de 1964 e expoente da ditadura militar tão elogiada por Bolsonaro.
O Parque Indígena Aripuanã, com 1,6 milhão de hectares, em Rondônia, foi interditado e reservado no final dos anos 60 em plena ditadura militar a partir do esforço de um grupo de indigenistas liderados por Francisco Meireles (1908-1973) e seu filho Apoena (1949-2004), ambos funcionários da Funai no governo militar _seria demarcado nos primeiros anos da redemocratização. O Parque Indígena do Xingu foi criado em 1961 mas era defendido pelo marechal e ícone do Exército Cândido Rondon (1865-1958) em trabalhos entregues por ele a Getúlio Vargas. Ao longo de sua longa jornada Brasil adentro, Rondon ajudou na identificação de várias terras indígenas com apoio institucional das Forças Armadas.
Episódios como esses evidenciam uma interligação positiva, ao longo da história brasileira, entre setores conservadores e indigenistas para garantir o reconhecimento e uso das terras tradicionais pelos primeiros habitantes do país. Prevaleceu um senso de justiça capaz de unir setores tão diversos como a antropologia e a caserna. São belas páginas das quais os brasileiros deveriam se orgulhar. Contudo, em 2018, como num passe de mágica, tudo isso desaparece nos discursos de Bolsonaro como se nunca tivesse existido e a questão indígena se vê perdida em nuvens de mistificação, mentiras e infâmias. O objetivo central parece ser erodir a credibilidade de ONGs (Organizações Não Governamentais), Ministério Público, indigenistas, antropólogos e indígenas.
Há uma razão para o presidente eleito e seus aliados militares mais próximos nunca contarem a história por inteiro: isso atrapalharia a sua narrativa de que as terras indígenas, anacronicamente chamadas por ele de “reservas”, são criações ideológicas da esquerda e de ONGs em conluio com interesses internacionais a fim de manter os índios enclausurados e impedidos de conhecer as belezas e luxos do mundo dito “civilizado”. Eles querem “ser como nós”, disse o eleito. Este é o cenário fake pintado por Bolsonaro em diversos discursos desde, pelo menos, 2015.
Hoje milhões de brasileiros compartilham e propagam acriticamente em redes sociais as supostas ideias do presidente eleito sem ao menos entender que não existe um “índio”, mas sim mais de 255 povos indígenas diferentes, cada um com sua própria história, tradição e aspiração. É sabido que existem indígenas que aceitam “parcerias” com agricultores, mas estão longe de ser a maioria. Não sendo a maioria, como empurrar goela abaixo uma política nacional única para povos tão distintos? Há indígenas, por exemplo, vivendo em perfeita harmonia com o meio ambiente há centenas ou milhares de anos, caçando, pescando e plantando em suas terras, como os yanomami ridicularizados por Bolsonaro. Certeza que eles querem “ser como nós”, ser mãode obra barata, abatidos pela violência urbana, viver em favelas, obrigados a trabalhos subumanos nas periferias das grandes cidades, enxotados de luxuosos centros de consumo, encaixotados em trens e ônibus superlotados? No campo indigenista, há pouca coisa mais reprovável do que tentar impor ao índio o nosso modo de vida a qualquer custo. E quando uma máquina estatal insiste nisso, movida por um discurso presidencial anacrônico, totalitário e indiferente, o resultado é apenas um: genocídio.
Da FSP