As jóias bolsonaristas e os penhorados da Caixa
Enquanto o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e parte de seu grupo enriquecem dissolvendo patrimônio público, como a venda ilegal de presentes luxuosos e de grife, que deveriam ser destinados ao governo — aponta a Polícia Federal —, milhares de brasileiros com severas dificuldades financeiras se desfazem de pequenas joias e objetos pessoais para pagarem as contas e sobreviverem no dia a dia. A saída acaba sendo a penhora de bens no tradicional prego da Caixa Econômica Federal.
Os leilões mensais realizados pela instituição de bens entregues em garantia de operação de penhor, e não resgatados pelo cliente, revelam o disparate entre as joias de Bolsonaro e Mauro Cid colocadas à venda em casas do ramo nos Estados Unidos e os itens que os cidadãos do Brasil se veem obrigados a abrir mão para seguirem tocando a vida.
Na investigação, a PF estima que aliados de Bolsonaro faturaram R$ 1 milhão com a venda dos presentes dados ao ex-presidente em viagens oficiais. Esse montante equivale ao valor arrematado em cerca de dois mil lotes de joias comercializados em 23 leilões da Caixa, realizados em julho, em todo o país. Se considerar que cada lote reúne, pelo menos, três itens, chega-se a um dado que chama a atenção: o conjunto de mimos das arábias vendido pelos bolsonaristas equivale a 6 mil joias leiloadas pela Caixa.
Os números grandiosos desses leilões exibem o tamanho da dificuldade financeira do brasileiro, que está se desfazendo de objetos pessoais como alianças, brincos, pulseiras, relógios e até de terços religiosos. Somente neste mês de julho, nesses leilões, foram arrematadas peças de 15.287 lotes, que deram um resultado financeiro de R$ 45,9 milhões para os cofres públicos.
Levantamento feito pelo Correio mostra que, nesses lotes, foram comercializados exatos 19.857 colares, 15.738 brincos, 11.145 alianças, 1.491 relógios e 213 terços. Entre os relógios, há 69 Rolex, mas nenhum de ouro branco cravejado em diamantes e com mostrador em madrepérola branca, também cravejado em diamantes. E que foi “recomprado” por Frederick Wassef por R$ 300 mil, segundo o advogado.
O relógio Rolex mais caro custou R$ 55 mil, vendido no leilão de uma agência em São Paulo. Trata-se de um Oyster Perpetual Date Yacht-Master, de aço-ouro e estado novo. O lote de maior preço, porém, continha apenas um item, um anel de diamante, de ouro branco, arrematado por R$ 66,3 mil, na Caixa de Alagoas.
Mas a imensa maioria das joias vendidas pelo banco são itens de baixo valor e o estado de conservação muitas vezes passa longe dos presentes da marca Chopard e do relógio Patek Philippe, dados ao governo e que a defesa de Bolsonaro argumenta que pertencem a ele, que pode vendê-los em qualquer lugar. E são apresentados em impecáveis estojos.
Nas peças leiloadas, há milhares que não estão em perfeitas condições e que aparecem descritas assim nos catálogos da Caixa: “com defeitos, amassadas, incompletas, partidas”. Tem brinco “faltando tarraxa” e “pulseira de couro estragada”. Nesse estado, estão exatamente 4.481 joias.
O ambiente virtual da Caixa que exibe os bens penhorados a serem leiloados é batizado de “Vitrine de Joias”. “Na Vitrine, você encontra uma grande variedade de itens: anéis, brincos, pulseiras, colares, abotoaduras, diamantes e outras pedras preciosas, barras de ouro, moedas, peças especiais e de grife, como relógios e canetas, por exemplo”, anuncia o site.
O caso das joias bolsonaristas, alvo de investigação da PF, está na mira da CPMI dos atos golpistas. A relatora, Eliziane Gama (PSD-MA), pretende investigar se os recursos obtidos com a venda desses produtos financiaram o quebra-quebra do dia 8 de janeiro.
Presente nas reuniões da CPMI, o deputado Chico Alencar (PSol-RJ) comentou o disparate existente entre o acervo das joias recebidas por Bolsonaro e os itens que os brasileiros se desfazem para fazer caixa.
“É mais um episódio que caracteriza o Brasil como país dos contrastes. Enquanto as ‘joias da Coroa’, desviadas para o patrimônio privado de mandatário, vão aos pregões de lojas de artigos de luxo de ricos, para aumentar a grana de quem já tem bastante, o pouco que parte da população tem, a classe média baixa e alguns raros pobres, vai para o prego e é pendurado para garantir o pão de cada dia, remédio na doença, pagamento de dívidas. Fartura acumuladora de uns poucos, penúria de endividamento crescente de muitos”, disse Chico Alencar.
Titular na CPMI, o deputado Rogério Correia (PT-MG) defende a convocação de Bolsonaro à comissão para explicar o “desvio” das joias. Ele falou também sobre a comparação entre as joias do ex-presidente e as comercializadas em leilões.
“Com Pix de R$ 17 milhões e um relógio de R$ 350 mil, o Bolsonaro fica ainda fingindo ser um homem do povo, tomando café com leite e pão com manteiga em padaria. Ele virou foi um multimilionário agora que está saindo da Presidência. Pelo roubo das joias e tentativa de golpe, será devidamente indiciado, com posterior prisão”, afirmou o petista.
A defesa de Bolsonaro sustenta que a legislação autoriza a venda desses bens, seja no Brasil ou no exterior. O ex-presidente, em entrevista ao Estadão, na sexta-feira, afirmou que “não recebeu nada” e que “não mandou ninguém vender nada”. Ele disse também que seu ex-ajudante de ordens, o militar Mauro Cid, tinha “autonomia” para agir.
Coração partido
Servidora terceirizada no Palácio do Planalto, a maranhense Rosângela de Souza já precisou se desfazer de alguns bens pessoais para pagar contas e comprar cesta básica para alimentar os dois filhos. Ela contou que, por duas vezes, usou a penhora da Caixa para conseguir o dinheiro para essas despesas.
Na primeira vez, há quatro anos, Rosângela se desfez de um colar e, por ele, recebeu
R$ 750. “Acho que até valeria mais, mas nem tive tempo de tentar vender de boca em boca. Na Caixa, é rápido. Avaliam e te pagam logo”, contou.
“Ter que vender esse anel me partiu o coração. Mas se minha mãe estivesse aqui ainda entre nós, não iria se chatear. Ia entender que é para o bem dos filhos dela”.
Sobre as joias de Bolsonaro, ela disse que viu no noticiário e afirmou que ficou “escandalizada” com a tentativa do ex-presidente de se apropriar de um presente que deveria ficar com o governo. “Sem noção fazer isso. Ele só recebeu porque era presidente. Se não fosse, não receberia esses presentes caros.”
Kit com anel, abotoadura, relógio Rolex de ouro branco com diamantes e um rosário islâmico. O relógio é o que teria sido vendido por Mauro Cid nos Estados Unidos e “recomprado” por Frederick Wassef por
R$ 300 mil.
Relógio Patek Philippe – segundo a PF, também foi vendido, numa loja na Pensilvânia, Precision Watches, e cujo valor estimado é de R$ 250 mil.
Kit da Chopard: anel, par de abotoaduras, um rosário árabe, uma caneta e um relógio. Foi parar em uma casa de leilões em Nova York, mas não foi vendido. O lance inicial era de R$ 248,5 mil, mas o valor estimado era entre R$ 596,4 mil e R$ 695,8 mil.
Kit de joias: colar, par de brincos, anel e relógio. Primeiro, esse kit foi noticiado com o valor de R$ 16,5 milhões. Depois, a Receita Federal o avaliou em R$ 5,6 milhões.
Duas esculturas folheadas a ouro. Seus valores não chegaram a ser estimados. Mauro Cid, consta na investigação da PF, disse serem de “baixos valores”.
Correio Braziliense