Governo bolsonarista de SP homenageará terrorista

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Foto: AE

“Chama o Terrorista.” Era assim que o então general João Batista Figueiredo, último presidente do ciclo militar, se referia ao coronel Antônio Erasmo Dias, quando queria convocar o homem que o governador Tarcísio de Freitas quer homenagear, batizando com seu nome um viaduto em Paraguaçu Paulista, cidade natal do coronel.

Na boca de Figueiredo, “terrorista” era um tratamento carinhoso e irônico. “Terrorista, você não me pede nada? Seus colegas (deputados) pedem e ganham estações de rádio, de televisão!” Naquele dia, Erasmo respondeu: “Chefe, veja se eu tenho cara de dono de televisão”. Não tinha. O homem era alto, magro e de olhos azuis e comandava a tropa sempre vestindo terno e gravata e pistola calibre 9 mm nas mãos.

O apelido dado por Figueiredo remetia ao caráter explosivo do homem que, entre 1974 e 1979, comandara com mão de ferro a Segurança Pública paulista. Ele vociferava ainda que não estivesse brigando com ninguém; apenas para realçar sua opinião. A alcunha lembrava ainda as bombas de gás que feriram estudantes com queimaduras graves usadas por policiais sob o comando do coronel durante a invasão do campus da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo, em 1977.

O coronel da voz tonitruante, que gesticulava aos militares diante do câmpus da PUC, era ele mesmo um professor. Entre 1956 e 1961 foi instrutor das escolas de aperfeiçoamento de oficiais e de estado-maior do Exército, tempo em que aproveitou para se formar bacharel em história pela Universidade da Guanabara. Mudou-se em 1962 para São Paulo, onde obteve a licenciatura pela USP, no câmpus da Rua Maria Antonia, o mesmo que testemunharia batalhas campais entre seus estudantes e os do Mackenzie, em 1968.

Esse homem com cara de bravo foi designado pelo general Aurélio de Lyra Tavares para comandar o Forte dos Andradas, no Guarujá, na Baixada Santista. “Durante 1963, Santos passou a ser uma cidade vermelha”, lembrou o coronel. “Nossa tropa foi preparada para, além de sua missão normal, atender a qualquer tipo de emprego como elemento de ‘segurança interna’”, escreveu Erasmo em um documento de 20 páginas – espécie de memórias – que ele entregou à reportagem.

Em 31 de março de 1964, o coronel e seus homens tomaram a refinaria Presidente Bernardes, da Petrobras, em Cubatão. No Guarujá, ele se tornaria íntimo de José Estefno – tio e padrinho do futuro governador Paulo Maluf –, cuja família detinha praticamente toda a orla da praia das Pitangueiras. Nascia ali uma ligação política que nunca se desfez. Foi também ali que começou outra amizade: a com o ex-presidente Jânio Quadros, que fora morar no balneário.

Os contatos políticos ajudaram Erasmo em sua nova função: a chefia do setor de informações do Exército, na Baixada Santista, onde teve as primeiras rusgas com a Igreja, em razão da atuação do bispo David Picão, que ele identificava com a “ala progressista contrária ao regime”.

Em 1968, assumiu o comando do Forte Itaipu, na Praia Grande. Deram-lhe ali a missão de cuidar de oito líderes estudantis presos no 30.º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), desbaratado pela polícia paulista, em Ibiúna (SP). Entre eles, estavam os futuros deputados José Dirceu e Vladimir Palmeira.

Erasmo os recebeu com um discurso, enaltecendo a “Revolução de 64″. E os advertiu: se tentassem fugir, seriam fuzilados. Colocou todos em uma casa cercada por uma trincheira com sacos de areia e guarda com metralhadora. Na primeira manhã de cárcere, os estudantes foram acordados por gritos. Dirceu reconheceu a voz do coronel. Estava repreendendo o oficial de dia. “E por qual motivo? Por causa de nosso café, que estava frio.” No dia das mães, proibiu visitas aos presos. Razão: “Comunista não tem mãe”.

Dirceu seria um dos presos trocados pela libertação do embaixador americano Charles Elbrick, sequestrado em 1969 pela ALN e pelo MR-8. Ele reencontraria Erasmo nos anos 1980, na Assembleia Legislativa de São Paulo. Dirceu era deputado pelo PT e Erasmo, pelo PDS, o partido de Maluf. O caminho que levaria ambos à política foi o enfrentamento entre o governo militar e a oposição ao regime.

Em 1970, Erasmo participara do cerco aos guerrilheiros liderados pelo capitão Carlos Lamarca, no Vale do Ribeira. Em um combate, os guerrilheiros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) capturaram o tenente Alberto Mendes Júnior, da PM paulista, e, depois, executaram-no a coronhadas no meio da selva.

Meses mais tarde, quando o guerrilheiro Ariston Lucena foi preso, coube a Erasmo levá-lo ao local da execução do tenente para recuperar o corpo. “Determinei que Lucena entrasse na sepultura. Pálido, tremendo, fiz com que entrasse impulsionado por uma rajada da minha (submetralhadora) Thompson! Por alguns minutos, fiz o terrorista sentir a proximidade da morte que sem dó e piedade ele submeteu o Mendes.”

Em 1974, o governador Paulo Egydio Martins o nomeou secretário da Segurança Pública. “Assegurei apoio ao Exército na missão de garantir a segurança interna.” Erasmo continua vociferante e se tornava pouco a pouco a face durona do regime, embora se colocasse ao lado do governador e do presidente Ernesto Geisel contra ações do Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 2.º Exército, que emparedavam a política de abertura do presidente.

Um episódio o deixou agastado com o coronel José Barros Paes, o chefe da 2ª Seção do 2º Exército: a prisão – sem o seu conhecimento prévio – de quase uma centena de policiais militares, acusados de participar de uma célula comunista. Um deles, José Ferreira de Almeida, inauguraria a sequência trágica de presos cujo assassinato os homens do DOI tentaram encobrir simulando suicídios por enforcamento.

Depois de Almeida, seriam mortos o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manuel Fiel Filho, o que levaria à demissão do comandante do 2.º Exército, o general Ednardo D’avila Melo, em 1976. “Tentavam (os homens do DOI) mostrar serviço. E isto é criar problemas maiores do que realmente poderia existir. A melhor coisa que existe na guerra é informação negativa. Informação negativa é a coisa mais bacana que existe. Querer criar informação positiva onde não tem nada é a maior estupidez que pode existir”, disse Erasmo.

O coronel era o secretário e, quando as coisas saíam errado, era ele que chamavam. Em uma entrevista em 2004, resolveu contar o que sabia. Pediu que ela só fosse publicada após sua morte. Nela contou como se deu a perícia do caso Fiel Filho, pedida pelo Exército. “Eu chamei o Rodrigues, que era um perito. ‘Vamos comigo até o DOI-Codi. Tava lá o Manoel. Tinha três lenços nele. Eu disse: ‘Dá uma olhada pra mim aí. Eu só quero que você me diga o seguinte: há um por cento de chance de ele ter se suicidado?’ O perito olhou, olhou, olhou e disse: ‘Um por cento existe’.”

Com a queda do general D’avila Melo, Dilermando Gomes Monteiro assumiu o 2º Exército. Nenhum preso mais podia morrer nos quartéis. Em dezembro de 1976, os militares cercaram a casa onde estava reunido o Comitê Central do PCdoB, na Lapa, na zona oeste de São Paulo. Ali tombaram fuzilados Pedro Pomar e Ângelo Arroyo. Mais de uma dezena de comunistas foram presos e levados ao DOI. Entre eles estava João Baptista Franco Drummond, que morreu no destacamento.

Mais uma vez, é Erasmos quem conta o que fez para cumprir a determinação de que o preso não podia morrer em quartel. “Ele (Drummond) quis fugir do xadrez; ele caiu de cabeça e morreu. Aí o Dilermando ligou para mim: ‘Erasmo, dá um jeito aqui’. Eu pensei: ‘Filho da puta, vou ter de dar um jeito para você?’. Aí, nós fizemos lá um acidente. Eu até brinquei: ‘Caiu, a cabeça não quebrou, deu uns trinta passos e caiu. E aí, quando foram ver, já tinha morrido. E o Dilermando com aquela palhaçada de ser amigo do d. Paulo (Evaristo Arns, cardeal-arcebispo de São Paulo)… E o d. Evaristo metia o pau em mim, que eu era o responsável.” Oficialmente, Drummond morrera atropelado por um carro, quando tentava fugir.

Na Segurança Pública, enfrentando a criminalidade comum, Erasmo mandava soltar e prender. Uma vez entrou em uma delegacia onde estava detido um jornalista – amigo de um conhecido seu – sob a acusação de porte de maconha. Chamou o delegado. “Quero ver o flagrante.” Apanhou o documento e o rasgou diante dos olhos estupefatos do policial. E ordenou: “Pode soltar o rapaz.”

Em 1975, enfrentou um dos episódios mais polêmicos de sua gestão: o caso Rota 66., quando três jovens de classe média desarmados foram perseguidos, metralhados e mortos porque acabaram confundidos com bandidos perigosos. “O Rota 66 foi o primeiro episódio drástico que eu enfrentei.”

Na mesma entrevista de 2004, Erasmo confessou que ajudou a fraudar a investigação do caso para acobertar os policiais da Rota. O coronel instituíra uma política que dava prêmios a policiais que caçavam e matavam bandidos. Naquele 23 de abril de 1975, quando chegou ao 15.º Distrito Policial, nos Jardins, a guarnição 66 da Rota havia acabado de estacionar. O secretário foi para a sala do delegado de plantão.

Em cima da mesa, estavam as armas dos cinco PMs. “Conta pra mim o que houve”, disse o secretário aos policiais. Erasmo ouviu calado o relato sobre a “perseguição e o tiroteio”. E apanhou uma das armas que os homens da Rota diziam ter apreendido com os jovens – dois revólveres calibre 22 e um calibre 32.

“Aí eu peguei assim a arma e fiquei com o tambor na mão”, contou o coronel. O revólver estava com defeito. Seria impossível que tivesse sido usado. Erasmo riu e perguntou aos PMs: “Bandido estava com essa arma?” O coronel escondeu em uma gaveta da delegacia a arma e outro revólver foi providenciado pelos policiais para simular a resistência.

O secretário contou ainda ter dado “um esculacho” nos PMs: “Olha, vocês aprendem, viu, que eu sempre estarei do lado de vocês, mas nada explica e justifica. Não adianta mais ficar discutindo, agora vocês vão responder processo”. Trinta anos depois, Erasmo admitiu “Eles (os rapazes) não estavam armados porra nenhuma. Na hora H, por que foge? Se foge é bandido! Então dá essa desgraça que a gente torce pra não dar. Depois, vem a merda; conforme o caso, enruste uma maconha, uma arma. É autodefesa”, confessou.

Segundo ele, a prática era comum. “Não foi uma nem duas vezes… Às vezes, chegava assim e o cara estava morto sem ninguém vendo – só Deus sabe – e eu chegava assim e via o revólver e tic, tic, tic.” O ex-secretário demonstrou como fazia para simular que o “bandido” atirava até descarregar sua arma. “Cansei de ver no começo: polícia deu cinco tiros e o bandido um só. É excesso de zelo! Economia! Eu fazia. Quando eu ia (aos locais de crimes), a primeira coisa que eu fazia era isso (descarregar a arma do suspeito morto).”

Erasmo deixou a secretaria em maio de 1978 para concorrer a uma vaga na Câmara dos Deputados – ele seria eleito com 150 mil votos. Voltou ao cargo em novembro e permaneceu ali até Paulo Egydio deixar o governo, em março de 1979. Deixou ali amigos, como o delegado e futuro senador Romeu Tuma. A experiência na secretaria o transformou: “A gente vai ficando meio sádico; vê tanta brutalidade dessa gente (criminosos) que dá vontade de matar”.

Mas o episódio que o perseguiria até o fim de sua vida, em 2010, seria a operação que ele comandou para impedir um congresso da UNE, na PUC-SP, em 22 de setembro de 1977. Cerca de 500 homens da tropa de choque e agentes do antigo Dops – a polícia política – invadiram o campus, na zona oeste, e prenderam 700 estudantes, arrastados a golpes de cassetete e pontapés. Foi uma das mais truculentas ações policiais em uma universidade durante o regime militar.

Os soldados puseram abaixo as salas de aula. Professores foram conduzidos debaixo de bordoadas e choques elétricos. Policiais gritavam e xingavam sem parar. Rasgaram livros e fichários, arrombaram portas e explodiram bombas, deixando 15 feridos, cinco dos quais queimados em estado grave. O estacionamento da universidade virou um campo de prisioneiros, enquanto se ouvia o vai e vem dos coturnos nas escadarias.

Romeu Tuma, o chefe do Dops, explicou assim o que houve: “Os estudantes insistiram em realizar uma manifestação ilegal. Não atenderam aos apelos da polícia do próprio secretário da Segurança, coronel Erasmo Dias. Então, tivemos que dispersá-los. Na área, não havia espaço para a fuga e os estudantes se acotovelaram no interior da faculdade, em corredores estreitos, e os incidentes se sucederam.”

Em outra oportunidade, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, os estudantes se entrincheiraram no prédio, enquanto policiais de Erasmo vigiavam ação. A multidão levou um boneco gigante promocional do filme King Kong, retirado do Cine Marrocos, até o parlatório da faculdade. Era o “Erasmo Kong”. A boutade enfureceu o coronel. Mas ele acabou desaconselhado por seu estado-maior a fazer ali o que faria 40 dias mais tarde na PUC.

Erasmo andava sempre armado. Trazia a pistola na cintura ou na pasta que carregava. E a exibia em momentos, para manter a fama de durão. Podia ser para estudantes que lhe foram entregar uma coroa de flores com seu nome, dez anos depois da invasão da PUC ou para um jornalista que foi entrevistá-lo na Assembleia Legislativa após seu jornal publicar um editorial que colocava em dúvida a coragem do coronel. Seu último mandato parlamentar foi como vereador em São Paulo, encerrado em 2004.

Em 4 de janeiro de 2010, morreu aos 85 anos, vítima de complicações em decorrência de um câncer no intestino, que o fizera perder 20 quilos. Morava sozinho em um flat modesto na Alameda Jaú, nos Jardins, em São Paulo. Dizia-se desgostoso com a política. Mantinha o discurso anticomunista e as caminhadas diárias no horário do almoço, na Avenida Paulista. O enterro do velho coronel reuniu suas seis filhas e uns poucos amigos do tempo em que acumulava prestígio, poder e fama.

Estadão