Governo congela investimento no SUS e abre mão de bilhões para a iniciativa privada
O governo federal abriu mão de mais de R$ 400 bilhões em impostos em favor da saúde privada nos últimos 12 anos. O valor contrasta com os gastos destinados ao SUS (Sistema Único de Saúde) – congelados por duas décadas – e rivaliza até com o orçamento total do Ministério da Saúde. A cada ano, a renúncia fiscal a esse grupo equivale a um terço do orçamento do ministério, hoje de R$ 130 bilhões. Esse dinheiro que não chega aos cofres públicos também é conhecido como “gasto tributário”.
Entre 2003 e 2015, a União destinou indiretamente R$ 331.498 bilhões para a saúde privada, de acordo com a única pesquisa a esse respeito, produzida neste ano pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) com dados da Receita Federal. Considerando o crescimento médio anual de 6% nas desonerações desse período, estima-se em R$ 109 bilhões o gasto tributário de 2016 a 2018, totalizando as desonerações em R$ 440,6 bilhões desde 2003.
Naquele ano, as desonerações em saúde, no geral, foram de R$ 17,1 bilhões, quase metade do gasto tributário concedido em 2015 (R$ 32,3 bi) ou um terço dos R$ 100 bilhões investidos no SUS. Nesse intervalo de 12 anos, o orçamento da saúde aumentou 86%, frente a um crescimento de 89% das renúncias.
Parte desse imposto não recolhido fica na conta de empresas farmacêuticas e hospitais filantrópicos. A maior fatia, no entanto, chega aos planos de saúde indiretamente por meio do abatimento no IR (Imposto de Renda) de pessoas físicas e jurídicas. Esses bilhões de reais têm um destino incerto porque o governo não regula a concessão do benefício, nem fiscaliza a utilização do dinheiro.
A possibilidade de o paciente abater parte da mensalidade no IR é a principal forma encontrada pelo governo para incentivar seguradoras e operadoras. Em 2015, esse valor foi de R$ 11,6 bilhões ou 36% do total. “A operadora não se beneficia em nada”, rebate o diretor-executivo da FenaSaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar), José Cechin.
Outra forma indireta de destinar verba ao setor privado é permitir que empresas abatam no IR uma parte dos gastos com os planos que oferecem a seus funcionários: foram R$ 4,5 bilhões em 2015, ou 14% do montante. “A maioria das pessoas tem plano empresarial, inclusive o ‘chão de fábrica’ que ganha salário mínimo. Não é só para gente abonada”, afirma Cechin.
“A verba que o Estado deixa de arrecadar poderia ser convertida em gasto público direto”, defende o responsável pelo estudo do Ipea, Carlos Ocké. “Do contrário, você subsidia estratos de renda que estão mais bem localizados na pirâmide social”, diz o pesquisador, ressaltando que desempregados e subempregados raramente possuem plano médico.
Professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, Mario Scheffer diz que “essas renúncias em saúde atendem a lobbies de setores influentes” da economia. “Diante dos inúmeros problemas de negação de cobertura e altos reajustes, essa renúncia tem muito mais o objetivo de favorecer as empresas do que a função original de compensar os gastos realizados pelos contribuintes com serviços de saúde não atendidos pelo SUS.”
O professor afirma, no entanto, que nem toda desoneração é ruim. É o caso da isenção fiscal a medicamentos distribuídos no SUS. A União concede 20% do gasto tributário a medicamentos e a produtos químicos utilizados na fabricação de remédios. Nem todos são distribuídos gratuitamente pelo governo, mas as farmacêuticas receberam um incentivo de R$ 6,6 bilhões em 2015.
Segundo o Ministério da Saúde “desonerações como do PIS/COFINS, ICMS e IPI, permitem a redução dos valores de compra de insulinas, medicamentos oncológicos para artrite reumatoide, hiperparatireoidismo, esclerose múltipla, para tratamento de doenças raras, equipamentos para radioterapia, dentre outros”.
Hospitais filantrópicos, como as Santas Casas, também deixaram de recolher R$ 9,5 bilhões em impostos só em 2015. “Há renúncias justas na saúde, como para medicamentos e isenções aos filantrópicos que de fato atendem o sistema público. São distintas da renúncia de planos de saúde que favorecem apenas as pessoas de melhor renda”, diz o professor. “Mesmo assim, é mais adequado que, no lugar das renúncias, os investimentos sejam diretos, pois isso tem efeito multiplicador.”
Cechin, da FenaSaúde, pensa diferente porque diz que o governo tem a obrigação de ofertar saúde para os 208 milhões de brasileiros, “mas não tem braço para isso”.
Embora o governo invista indiretamente bilhões de reais na saúde privada, pouco se sabe sobre como o dinheiro é usado. “Não há contrapartida dos planos para receber a renúncia fiscal, porque eles não recebem diretamente esse subsídio”, diz Ocké, do Ipea. “Esse setor é desregulado. Estamos em 2018 e não tínhamos esses dados. [O estudo feito neste ano] É o primeiro com informações da Receita Federal. Agora o gasto tributário já aparece projetado pelos documentos do governo.”
Fora do Brasil, diz Scheffer, as despesas fiscais em saúde são vistas como exceção, “uma perda de receita” que é “acompanhada de medidas de total transparência, análises críticas e reexames para saber se vale a pena manter a renúncia”. Ele dá o exemplo do sistema alemão. “Ele confere papel oficial a organismos de pesquisa não governamentais, que formulam avaliações concorrentes sobre a eficácia desses gastos.”
O Ministério da Saúde afirma que os hospitais filantrópicos “precisam cumprir requisitos, como oferecer no mínimo 60% de internações hospitalares e atendimentos ambulatoriais a pacientes do SUS, além de cumprir metas preestabelecidas que melhoram e qualificam o atendimento prestado à população”.
Em 2014, o TCU (Tribunal de Contas da União) publicou o Acórdão 1.205, em que pede a diversos ministérios, como o da Saúde, a definição de “objetivos, indicadores e metas” para “avaliar os resultados alcançados por tais políticas”. A intenção é “verificar a pertinência de regulamentar ações governamentais financiadas por renúncias tributárias”. A reportagem perguntou ao Ministério da Saúde sobre a resposta à solicitação do TCU:
Ocké escreve no estudo que, além da magnitude e trajetória crescente dos subsídios, a pesquisa é relevante em especial depois da aprovação da EC-95/2016, que não colocou nenhum teto para os gastos tributários “como fez em relação às despesas” com saúde, que ficarão congeladas por 20 anos. “A expectativa é que a falta de um limite para os gastos tributários aumente a pressão para a ampliação de benefícios fiscais.”
Para Scheffer, “é inadmissível manter gastos tributários em despesas públicas ineficazes”. “Ainda mais neste cenário de crise e ajuste fiscal. Diminui-se a arrecadação no momento em que a população mais precisa do SUS, hoje sem dinheiro.”
O professor da USP diz que “será difícil eliminar” os gastos tributários. “Pela resistência que viria de parte da classe média. Mas talvez seja possível alguma meta para diminuí-lo progressivamente.”
Já Ocké sugere que se estabeleça “um teto” para os gastos tributários, como o que limitou os gastos públicos por meio da EC-95.
Cechin diz, no entanto, que “nada garante” que o SUS ficaria com o dinheiro que sobraria das desonerações. “Tributo fiscal pode ser alocado livremente. Metade do Imposto de Renda é mandado para estados e prefeituras, que não têm a obrigação de pôr a verba na saúde.”
Para Ocké, a saúde pública perde com a ausência de um teto para a renúncia fiscal:
De um lado, você sucateia o SUS ao congelar os gastos; de outro, não põe limite para repasses indiretos às operadoras. Assim, você força as pessoas a irem para o setor privado, estimulando a privatização da saúde
A reportagem perguntou aos futuros ministros da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e de Economia, Paulo Guedes, se o próximo governo pretende alterar a política de desonerações fiscais, mas nenhum respondeu até a publicação desta reportagem.
Mandetta chegou ao cargo apoiado por entidades da área médica e hospitais filantrópicos. Em sua campanha para deputado federal em 2014, recebeu R$ 100 mil em doação pela operadora Amil. Em 2016, votou pela aprovação do teto dos gastos públicos (EC-95).
Do UOL