Farmácia Popular deixa de atender 7 milhões de pessoas
Com gastos 27% menores desde 2015, o programa Farmácia Popular deixou de atender cerca de 7 milhões de pessoas nos últimos dois anos, segundo levantamento da Repórter Brasil junto ao Ministério da Saúde e a Fiocruz. Os números refletem o fechamento, em 2017, de 400 farmácias públicas administradas pelo governo federal, além da queda na distribuição dos medicamentos pelas farmácias privadas conveniadas. Com o menor orçamento em seis anos, o programa está sem coordenador desde setembro e não tem perspectiva de ser ampliado pela atual gestão.
Criado em 2004, o Farmácia Popular distribui medicamentos básicos gratuitamente, por meio de 31 mil farmácias privadas conveniadas, para hipertensão, diabetes e asma. Remédios para controle de colesterol, rinite, Parkinson, osteoporose e glaucoma, além de fraldas geriátricas e anticoncepcionais, são vendidos com 90% de desconto.
O programa contava, até 2017, com 400 farmácias federais em cidades e bairros de baixa renda. Fechadas na gestão do ex-presidente Michel Temer, essas unidades vendiam outros 77 medicamentos com desconto e atendiam ao menos 6 milhões de pessoas anualmente.
À época, o Ministério da Saúde justificou que 80% dos R$ 100 milhões gastos com a rede própria correspondiam a custos administrativos, e não a medicamentos. Mas ao invés de ampliar o serviço nas farmácias conveniadas, houve redução de 1 milhão de pessoas atendidas em 2018 nessa vertente. Somando os dois braços do programa, o número de pessoas atendidas caiu de 28,8 milhões, em 2016, para 21,6 milhões no ano passado.
“O fechamento da rede própria foi um retrocesso porque deixou muitos brasileiros, principalmente os de baixa renda, sem acesso”, avalia a professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Alexandra Crispim Boing.
O diagnóstico é o mesmo de Maria Aparecida da Silva, de 56 anos. Moradora do Jardim Floresta, na zona sul de São Paulo, ela retira medicamentos para pressão e doença cardíaca da mãe, de 90 anos, e usava com frequência a Farmácia Popular do bairro – fechada em janeiro de 2017. “Prejudicou todo mundo, meus parentes e vizinhos usavam a farmácia”, diz ela. “A fila é imensa nos postos de saúde da região”.
Na UBS do bairro, outra paciente – que não quis se identificar – também afirma que foi afetada. “Quando não achava no posto, eu passava na farmácia popular. Agora vou em outras farmácias, mais caras”, conta.
A falta de informações também contribui para afastar a população do programa, como a dona de casa Maria José dos Santos, de 60 anos. Moradora de Embu-Guaçu, na grande São Paulo, ela retira os remédios para a diabetes do marido, de 90 anos, mas não sabia, até ser informada pela Repórter Brasil, que insulinas são distribuídas gratuitamente pelas drogarias conveniadas. “Insulina também dá na Farmácia Popular? Ninguém nunca me falou”.
Em nota, o Ministério da Saúde afirma que “as informações sobre quantidade de pacientes por programa não devem ser somadas”, porque um mesmo usuário da rede própria pode ter usado uma farmácia conveniada no mesmo ano. Porém, a pasta não informou o número de atendimentos feitos nos últimos anos. Além disso, o órgão diz que “a possível redução de atendimentos não implica necessariamente em redução de acesso [a remédios], o qual pode ser ofertado por meio das Unidades Básicas de Saúde do SUS”.
Especialistas afirmam, no entanto, que somar as duas vertentes revela um retrato geral do Farmácia Popular. Eles demonstram preocupação com o encolhimento do programa pois, a cada ano, o Brasil ganha 1 milhão de novos idosos – e também porque essa política, entre 2004 e 2016, foi capaz de reduzir em 2 milhões o número de internações por diabetes, hipertensão e asma, segundo estudo do Ipea. Cidades assistidas pelo programa também tiveram redução no número de mortes.
“O impacto na saúde é grande se você não trata as doenças crônicas, porque elas geram muitas complicações, como infarto e AVC”, diz a médica Maria Angélica Borges dos Santos, da Fiocruz.
Outro problema é que os postos de saúde, principal porta de acesso a medicamentos, estão subfinanciados, segundo o assessor técnico do Conasems (conselho das secretarias municipais de saúde) Elton Chaves. “E o Congresso entende que não precisa de mais recursos para a saúde”, critica. Para Chaves, o teto de gastos é outra preocupação, porque limita os repasses federais aos municípios.
O quadro é piorado pela falta de um coordenador para o programa, cargo desocupado há sete meses. É a segunda vez que isso acontece em 10 anos – a primeira foi no início da gestão Temer. O ministério informa que a função é acumulada pela Coordenação-Geral de Assistência Farmacêutica Básica. Porém, o regimento interno do Ministério da Saúde prevê um coordenador específico para o Farmácia Popular.
Além da redução no atendimento, o orçamento do Farmácia Popular previsto para este ano é de R$ 2,6 bilhões, o menor desde 2013. Tendência que reflete o que aconteceu nos últimos anos: os gastos de R$ 3,5 bilhões, em 2015, caíram para R$ 2,5 bilhões no ano passado (valores corrigidos pela inflação), segundo dados do SIOP, da Secretaria do Orçamento Federal.
Suspeitas de fraude e investigações do Tribunal de Contas da União (TCU) colaboraram para a redução orçamentária. Foram descredenciadas 3.500 farmácias privadas cujos convênios eram suspeitos. As atuais 31 mil drogarias parceiras do programa atendem mais de 4 mil cidades – mas deixam outras 1,2 mil sem acesso.
As investigações do TCU recaíram também sobre os valores de reembolso pagos pelo ministério às farmácias privadas. O órgão fiscalizador identificou que o valor pago pelos medicamentos à rede particular era maior do que o gasto com os mesmos remédios no SUS. A diferença chegava a 2.500% no caso do captopril (para hipertensão).
Os novos valores, contudo, chegaram a ser criticados por representantes do varejo farmacêutico. “O programa tende à extinção”, afirmou no ano passado o presidente da Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), Sérgio Mena Barreto. Informado sobre esta reportagem, ele não atendeu ao pedido de entrevista.
A redução dos valores “com certeza” afetou o interesse das farmácias privadas no programa, avalia Ronald Santos, membro do Conselho Nacional de Saúde (CNS).
Para compensar o fechamento da rede estatal de farmácias, o governo aumentou em R$ 100 milhões o repasse anual aos municípios, a partir de 2017, para a compra de medicamentos básicos. Contudo, o total de repasses está caindo desde 2010 – passando de R$ 1,3 bilhão, em 2010, para R$ 910 milhões em 2016, segundo levantamento do Ipea. A situação financeira das prefeituras também piorou com a crise econômica, de acordo com o estudo: os gastos municipais com remédios passaram de R$ 2,4 bilhões, em 2015, para R$ 1,4 bilhão em 2016.
O Ministério da Saúde afirma que o Farmácia Popular “está em pleno funcionamento” e que o programa é “uma ação alternativa” para complementar “a distribuição de medicamentos no SUS”. A pasta diz que a queda nos gastos com o programa é reflexo da “economia gerada” a partir dos valores mais baixos pagos pelos remédios, após a investigação do TCU.