Proposta de Moro para combater contrabando de cigarros é vista com ressalvas
O trabalho prevê ainda aumento de R$ 2,5 bilhões na arrecadação do governo, valor que viria de uma possível migração do consumo do cigarro ilegal para o legal.
A proposta, que busca apontar medidas para combater o contrabando, é vista com ressalvas por especialistas ouvidos pela Folha.
Chamado de “Uma alternativa de combate ao contrabando a partir da estimativa da curva de Laffer e da discussão sobre a política de preço mínimo”, o texto, feito em 2017, tem como autores Pery Shikida, pesquisador da Unioeste (Universidade Estadual do Oeste do Paraná), Mario Margarido, assessor da Secretaria de Fazenda de São Paulo, e Matheus Nicola, mestrando em economia na Unioeste.
Shikida assumiu cargo no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do ministério neste ano.
O documento, encaminhado pela pasta à reportagem, foi elaborado a pedido do Idesf (Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras), que atua na área de fronteiras e tem parceria com empresas como a Souza Cruz.
O presidente do instituto, Luciano Barros, no entanto, afirma que o estudo partiu de demanda espontânea, sem financiamento da indústria. Os autores também negam relação com o setor.
Ainda assim, o texto traz vários dos argumentos usados pelas empresas para questionar o aumento na tributação. O principal deles é que a elevação de impostos, realizada entre 2011 e 2016, levou a uma migração do consumo do cigarro legal para o contrabandeado.
Outro fator que colaborou para essa transferência, dizem, foi a política de preços mínimos implementada a partir de 2012 para esses produtos. Hoje, cada maço parte de R$ 5.
Com base em simulações, o estudo sugere manter a alíquota de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), mas eliminar a regra de preços mínimos, o que levaria a um barateamento do produto. O objetivo seria aumentar o poder da indústria de concorrer com o mercado ilegal.
“É mais fácil deixar a indústria resolver esse problema do que o Estado ter de aumentar ações contra o contrabando e tirar dinheiro de outros setores”, afirma Nicola.
De acordo com o estudo, a retirada dos preços mínimos poderia elevar o faturamento de indústria em R$ 7,5 bilhões, um aumento de 45%. Já o governo teria aumento em torno de R$ 2,5 bilhões na arrecadação com o aumento na produção.
Em abril, o estudo foi apresentado pelos autores no Conselho Nacional de Combate à Pirataria, grupo sediado no Ministério da Justiça com membros da indústria e governo.
Pela reação no conselho, a ideia agrada aos dois lados.
“Paulo Guedes [ministro da Economia] que vai gostar: deixa o mercado competir”, brincou Shikida ao fim de sua apresentação.
Especialistas citados como referência no estudo, no entanto, apontam falhas na proposta. “É uma discussão incorreta”, afirma o economista Roberto Iglesias, especialista em tributação de tabaco.
“O problema é eliminar o comércio ilícito. E, para isso, a melhor maneira é uma negociação com o Paraguai.”
O país vizinho tem uma tributação bem mais baixa que a do Brasil —18%, ante 71%, em média, no caso brasileiro.
Segundo Iglesias, mesmo que a redução de impostos barateasse o cigarro brasileiro, o valor seria insuficiente para competir com o paraguaio.
“A única maneira é conseguir que os paraguaios paguem impostos”, afirma.
Além disso, lembra, não seria a primeira vez que o governo tenta combater o contrabando via redução tributária. Entre 1999 e 2007, a alíquota de IPI sobre o cigarro caiu de 42,5% do maço para uma faixa entre 20% e 25% desse valor.
“Há várias maneiras de combater o comércio ilícito, mas escolhem a menos prática, ruim para a saúde brasileira e que já foi feita e não funcionou.” A medida, diz, diminuiu a arrecadação e foi incapaz de conter o contrabando.
O estudo dá pouca ênfase a medidas, como reforço do policiamento das fronteiras. Também desconsidera evidências em saúde, como os custos do tabagismo, cujo prejuízo é estimado em R$ 56,9 bilhões ao ano, e o recente aumento no consumo entre os mais jovens.
“O prejuízo se torna maior se contabilizado o que o governo tem de investir para prevenir o primeiro contato com o cigarro”, afirma Tânia Cavalcante, à frente da comissão brasileira da Convenção-Quadro do Controle do Tabaco, tratado da OMS (Organização Mundial da Saúde) do qual o Brasil é signatário.
O único aceno à questão de saúde feito pelos autores são dados sobre a redução tributária no Canadá, realizada em 1994, o que levou a um aumento no consumo de cigarro no país. A política foi revertida e, hoje, o imposto cobrado é de 68% do preço de varejo.
Em março, o ministro da Justiça, Sergio Moro, afirmou no Congresso que, se o alívio tributário levasse a um aumento do consumo de cigarro, a medida seria descartada.
Nicola admite o risco. “Se não for feita ação forte de prevenção, o aumento no consumo realmente pode ocorrer”, afirma ele, que defende campanhas direcionadas aos mais jovens.
Já Shikida diz que um aumento seria residual e que uma substituição do cigarro ilegal para o legal reduziria problemas em saúde. “Há dezenas de estudos que mostram a qualidade inferior do cigarro contrabandeado”, diz.
Para André Szklo, pesquisador do Inca (Instituto Nacional de Câncer), a redução de preços não é a melhor medida para combater o contrabando. “Estudam reduzir o preço, quando deveriam aumentar. Quando há aumento de preço, há redução no consumo.”
Entre 2011 e 2017, após o aumento da tributação, o índice de fumantes no país passou de 14,8% para 10%.
Em nota, o ministério disse que a criação do grupo de trabalho seguiu sugestão do conselho de combate à pirataria, com base em “estudos que sugerem exaustão no modelo brasileiro de combate à pirataria e mesmo de saúde pública”. A pasta repassou o artigo dos autores em seguida.
Para Iglesias, não há que falar em exaustão. “Uma política é efetiva se reduzir o consumo, e isso ocorreu mesmo com o crescimento do comércio ilícito. É isso que importa.”
POLÊMICA, REDUÇÃO DE TRIBUTOS OPÕE GIGANTES DO TABAGISMO NO BRASIL
Não é apenas entre especialistas que falta consenso sobre a eficácia da redução de impostos no combate ao contrabando. As próprias gigantes tabagistas divergem sobre o tema.
“É preciso sim ter uma revisão do sistema tributário. Se isso vai resultar em redução, o grupo de estudos que tem de olhar”, diz Rinaldo Zangirolami, diretor da Souza Cruz.
Segundo ele, por causa do imposto mais barato em vigor no Paraguai, a faixa de preço do cigarro contrabandeado vai de R$ 2,50 a R$ 3,50 –ante o mínimo de R$ 5 no Brasil.
“O cerne da questão é existir um produto vendido a R$ 2,50, sem pagar imposto e sem vigilância sanitária. É uma indústria informal que tem o crime organizado por trás.”
Embora o discurso esteja alinhado com a proposta do Ministério da Justiça de discutir o tema, o diretor afirma que a empresa não foi consultada pelo governo.
Agenda oficial do secretário nacional do Consumidor, Luciano Timm, que preside o conselho contra pirataria, no entanto, aponta reunião com a Souza Cruz e Japan Tobacco em 25 de fevereiro, um mês antes da criação do grupo para discutir a redução de impostos.
A pauta era uma “visão propositiva a fim de reduzir o contrabando de cigarros no país”.
Questionado, Zangirolami disse não saber do encontro, mas que reuniões são rotineiras.
A Folha procurou Timm para saber se a questão do imposto foi comentada, mas não obteve retorno.
Para a Philip Morris, a proposta de reduzir preços do produto brasileiro para fazer com que o cigarro legal concorra com o ilegal é simplista.
“Se o mercado formal baixar os preços à custa de uma redução de impostos, facilmente o mercado informal tem condições de baixar mais”, diz o diretor de Assuntos Corporativos da Philip Morris, Fernando Vieira.
Para ele, a solução é aumentar o controle das fronteiras.
A proposta de reduzir os tributos também tem movimentado institutos que atuam no combate ao contrabando e ligados a empresas do setor.
Para Edson Vismona, presidente do ETCO (Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial), o ideal seria adotar uma regra tributária que contemplasse a segmentação de mercado, com impostos menores para produtos mais baratos. Ele também defende uma revisão do preço mínimo para que a medida seja efetiva.
“A lógica é aumentar o preço dos produtos mais caros, porque esse consumo não vai migrar para o contrabando, e diminuir o tributo dos mais baratos, aos quais a população mais pobre teria acesso.”
Dentro do setor, a proposta é vista como favorável à Souza Cruz, que tem forte participação em vendas de marcas mais baratas e é uma das fundadoras do ETCO. Vismona nega.
“Todas as fábricas brasileiras têm produtos em uma faixa mais barata. Mas elas disputam 45% do mercado, porque o restante está com o contrabando”, diz.
Da FSP