Crianças são convencidas a desfilar em passarela de shopping em busca de adoção e geram revolta nas redes
A ação, chamada de “Adoção na Passarela”, foi organizada pela Associação Mato-grossense de Pesquisa e Apoio à Adoção (Ampara), em parceria com a Comissão de Infância e Juventude (CIJ) da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Mato Grosso (OAB-MT) e outras entidades do Estado.
No evento, conforme a organização, 18 adolescentes acima de 12 anos desfilaram em uma passarela criada em um shopping de Cuiabá. Conforme a entidade, cerca de 200 pessoas – muitas delas interessadas em adoção – acompanharam da plateia.
Lojas de roupas e calçados auxiliaram no evento, por meio de doação de itens para que os adolescentes pudessem desfilar.
No texto de divulgação do desfile, a presidente da CIJ, Tatiane de Barros Ramalho, informou que o evento era uma das ações feitas durante a Semana da Adoção, que incluiu, entre outras atividades, palestras, seminários e recreações com as crianças.
“Trata-se de uma noite para os pretendentes a adotar poderem conhecer as crianças e os adolescentes. A população em geral poderá ter mais informações sobre adoção e os menores em si terão um dia diferenciado, em que irão se produzir, fazer cabelo, maquiagem e usar roupa para o desfile”, disse Tatiane, dias antes do evento.
Organização destaca respaldo na Justiça
Nas redes sociais, o evento foi duramente criticado.
“As crianças na passarela, para pretendentes ver o quão bonitas, simpáticas e desenvoltas são, parece-me uma antiga feira de escravo, onde os senhores viam os dentes e o corpo dos africanos para negociar o lance. Não acho legal, aliás, acho péssimo”, escreveu o advogado mato-grossense Eduardo Mahon.
Em conversa com a BBC News Brasil, Eduardo Mahon afirma que o local escolhido para o desfile foi inadequado. “Se um desfile já pode dar azo a dupla interpretação, a ideia dos organizadores foi infeliz em fazer o ato em um shopping, que é, por essência, um local de consumo”, declara.
Presidente da Ampara, Lindacir Rocha Bernardon, uma das responsáveis pelo evento, afirma que o desfile foi uma forma de ajudar os jovens que há anos esperam por uma família. “Somente crianças acima de 12 anos desfilaram. Todas já foram vistas por diversas famílias, em abrigos, mas ninguém adotou”, afirma, negando a informação de que crianças de quatro a 11 anos também participaram do evento em busca de uma família.
Conforme a presidente da associação, as crianças menores que desfilaram já haviam sido adotadas anteriormente e estavam acompanhadas de suas famílias. “Ao todo, 16 famílias participaram do evento, com os filhos”, afirma. As famílias participaram do desfile para, conforme a organização, mostrar os benefícios da adoção.
Lindacir afirma que o evento foi autorizado pela Justiça de Mato Grosso. “O juiz permitiu a realização do desfile. Nós somos uma instituição séria, não brincamos com crianças”, declara.
Esta foi a segunda vez que o “Adoção na Passarela” foi organizado em Cuiabá. Na primeira, em 2017, conforme Lindacir, dois adolescentes, de 14 e 15 anos, foram adotados.
‘Como se fossem pets’
Apesar de afirmar que o evento teve o objetivo de ajudar os jovens que buscam um lar, inúmeros internautas criticaram a ação.
A ex-deputada federal Manuela D’Ávila (PCdoB) lamentou o evento. “Acho que essa é uma das notícias mais tristes que li. Crianças em uma passarela, cheias de sonhos e desejos, buscando aprovação a partir de um desfile, como se parar amar um filho tivéssemos que admirá-los fisicamente”, disse, em publicação feita nesta quarta-feira em seu Instagram.
“Triste. Feira de adoção? Como se fossem pets”, escreveu uma internauta. “Ficou parecendo leilão de boi, por essa eu realmente não esperava”, acrescentou outra.
Na tarde desta quarta, a Defensoria Pública de Mato Grosso emitiu um comunicado repudiando o evento. “Corre-se o risco de que a maioria dessas crianças e adolescentes não seja adotada, o que pode gerar sérios sentimentos de frustração, prejuízos à autoestima e indeléveis impactos psicológicos”, diz a instituição.
A Defensoria declara ainda que a exposição dos menores pode levar à objetificação e “passar uma ideia de mercantilização, fato que não coaduna com os princípios norteadores da Constituição da República Federativa do Brasil (CF/88) e do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA).”
“É importante verificar que, não se pode, sob o pretexto de facilitar a adoção, usar práticas que atentem e violem a integridade psíquica e moral, conforme expressa o artigo 17 do ECA. Existem limitações éticas à busca de voluntários dispostos à adoção, e elas devem ser verificadas, como já diz o adágio popular: ‘os fins jamais poderão justificar os meios'”, acrescenta a instituição.
Também por meio de nota, o Pantanal Shopping, onde ocorreu o evento, afirmou que “repudia a objetificação de crianças e adolescentes”. A entidade ainda diz que o objetivo do desfile foi contribuir com a promoção e conscientização sobre adoção e direitos da criança e adolescente.
O comunicado dos representantes do shopping ressalta que a ação teve o apoio de da Associação Nacional do Grupo de Apoio à Adoção e de instituições de Mato Grosso como o Ministério Público Estadual, Secretaria de Estado de Assistência Social e Cidadania, Sindicato dos Oficiais de Justiça, Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente e do Tribunal de Justiça.
Por meio de nota, a OAB-MT e a Ampara afirmaram que repudiam qualquer tipo de distorção do evento que possa associá-lo a “períodos sombrios da nossa história”. Segundo as entidades, em nenhum momento houve a exposição de crianças e adolescentes durante a ação.
Ainda de acordo com as entidades, nenhuma criança ou adolescente foi obrigado a participar do evento. “Todos eles expressaram alegria com a possibilidade de participar de um momento como esse. A ação deu a eles a oportunidade de, em um mundo que os trata como se invisíveis fossem, integrar uma convivência social”, diz a nota.
De BBC