Quem é Glenn Geenwald, o homem que botou a Lava Jato de joelhos
O dia 11 abril seria um daqueles mais tranquilos na rotina de Glenn Greenwald, o advogado e jornalista norte-americano vencedor do Pulitzer em 2014 por conta das reportagens que fez um ano antes, a partir de documentos da espionagem norte-americana revelados a ele por Edward Snowden (ex-analista de sistemas da CIA e da NSA, agências de inteligência e de segurança nacional dos EUA, respectivamente). Por isso, marcamos para esta data o encontro da Trip, mas nada foi como o planejado.
A caminho do Rio de Janeiro, onde Glenn mora há 14 anos, já sabíamos que o assunto dominante nas redes sociais e no noticiário era desde bem cedo a prisão do ativista, programador, jornalista e fundador do site WikiLeaks, o australiano Julian Assange. Ele havia sido entregue pela embaixada do Equador às autoridades inglesas depois de sete anos de exílio dentro da sede da diplomacia do país sul-americano em Londres.
Glenn teria, nas próximas horas, sua agenda totalmente tomada por compromissos, acionado por canais internacionais como a CNN e a Fox News, com os quais colabora frequentemente, isso somado aos artigos que precisaria produzir para seu próprio veículo, o site The Intercept Brasil.
De bermuda, chinelo e camisa polo, ele entrava e saía do escritório do The Intercept, localizado dentro da casa-refúgio em que mora, na Gávea, nas imediações da floresta urbana do morro Dois Irmãos. Entre conversas com o editor de seu site e breves passagens pela sala, íamos, aos poucos, falando sobre a forma como ele lida com o perigo e avalia riscos. E Assange, neste caso, era o assunto que mais preocupava Glenn. “Era muito importante para o governo dos EUA conseguir processar o Assange e, para fazer isso, criaram essa teoria de que ele tentou ajudar Chelsea Manning [soldado transgênero que, ainda quando atendia por Bradley Manning, vazou um vídeo em que soldados americanos matavam deliberadamente civis iraquianos a partir de um helicóptero] a hackear documentos”, diz. “Mas é muito vago. Eles estão acusando Assange de coisas que todo jornalista faz o tempo todo, eu inclusive: encorajar uma fonte a conseguir mais documentos. Se isso é um crime, todos os jornalistas estão em perigo”, acredita Glenn. “Sempre tive medo de que criassem uma teoria assim para mim, de que ajudei o Edward Snowden a fugir ou a pegar documentos… Acho muito injusto tudo o que estão fazendo com o Assange, mas, além disso, é uma ameaça ao jornalismo no mundo todo.”
O tom preocupado contrasta com a espetacular tranquilidade com que lida com tudo, seja com a agenda corrida do dia, seja com os muitos riscos a que tem a consciência de estar exposto desde que ganhou notoriedade expondo escândalos envolvendo a espionagem americana a países do mundo todo, entre eles, o Brasil, seja lidando com perigos decorrentes do atual e acirrado momento brasileiro e sua defesa constante dos direitos humanos. “Eu e o David [Miranda, seu marido e deputado federal pelo PSOL, que assumiu a cadeira deixada por Jean Wyllys] estamos recebendo ameaças de morte o tempo todo. E o fato de termos visibilidade como um casal gay num país onde isso provoca muita raiva aumenta mais ainda nosso risco.
Quando a polícia prendeu os assassinos da Marielle Franco, pegaram os computadores deles e descobriram que eles estavam monitorando outros jornalistas, políticos e ativistas. David estava na lista”, conta. “Mas eu prefiro aceitar o risco e morar com dignidade, com coragem, exercendo meus direitos de fazer jornalismo, ativismo e denunciar o que acho injusto.”
Desse jeito calmo, Glenn, hoje com 52 anos, circula em meio aos latidos de seus 25 cachorros e o constante movimento da casa da família que forma com David, 33, e os pequenos João, 12, e Jonathan, 10, adotados pelo casal em 2017.
Trip. Você recebeu o Pulitzer, publicou livros que se tornaram best-sellers, colaborou com veículos como The Guardian, The Washington Post, The New York Times, CNN, O Globo. E até os 38 anos você era advogado, e não jornalista. O que motivou a mudança?
Glenn Greenwald. Em 2005, eu estava trabalhando como advogado constitucional havia 11 anos e sabia que queria mudar o rumo do meu trabalho, fazer alguma coisa com política. Mas não tinha uma ideia clara do que queria fazer. Além disso, estava saindo de um casamento de 11 anos e morando em Nova York. Cheguei naquele ponto em que você pensa: “O que quero fazer da vida?”. Aí, aluguei um apartamento aqui no Rio, só por sete semanas, para pensar sobre o meu futuro e, no primeiro dia, encontrei o David. Nos apaixonamos e decidimos ficar juntos. Naquela época, tinha uma lei que proibia o governo americano de dar direito de imigração a casais gays, e no Brasil havia a possibilidade de eu conseguir o visto permanente. Mas, morando aqui, eu não poderia mais ser advogado, então, criei um blog em outubro de 2005. Depois de algumas semanas, veio um escândalo sobre a espionagem nos EUA [o episódio envolvendo a atuação da CIA no caso da ex-agente Valerie Plame e seu marido, o diplomata Joseph C. Wilson, que levou a público as mentiras inventadas para justificar a invasão do Iraque]. Comecei a escrever sobre isso quase todo dia. Minha audiência cresceu rápido e consegui fazer do jornalismo minha nova carreira. Não foi uma coisa que decidi, aconteceu.
Você já começou falando de espionagem. Sentiu alguma pressão nesse começo? No começo, ninguém estava lendo o meu blog. Mas, com o Snowden, sim, eu me sentia ameaçado. Sabia que o risco era bem alto desde a primeira vez que ele me falou sobre os documentos secretos que tinha, da NSA, a agência mais sensível do governo mais poderoso do mundo. Antes de eu viajar para Hong Kong para encontrar com ele, tínhamos também muitas preocupações sobre esse ser um plano do governo para tentar me provocar a cometer um crime.
Temia que fosse uma armadilha? Ele trabalhava dentro do governo dos EUA, eu não sabia quem ele era. Então, tínhamos a preocupação de que fosse uma tentativa do governo de provocar a gente a cometer crimes. Snowden começou a falar muito sobre eu ir a Hong Kong para encontrar com ele. Mas eu disse que não faria isso antes de ele me mandar documentos que justificassem a viagem. E ele me mandou entre 20 e 25 documentos incríveis, muito pesados e obviamente genuínos… Desde aquele minuto, soube que o risco seria muito alto.
Como foi o encontro? Quando viajei para Hong Kong, o tempo todo era uma dúvida se estávamos sendo seguidos, monitorados pela polícia dos EUA, pela CIA, pela polícia da China. Estávamos muito preocupados, eu e Laura Poitras [documentarista e parceira de Glenn em diversos projetos, entre os quais estão as reportagens envolvendo Snowden]. Fizemos um monte de coisas pensando nisso. Pegamos um táxi, depois trocamos para outro, caso estivéssemos sendo seguidos. Ficamos atentos à possibilidade de nossas conversas estarem sendo monitoradas. E até o momento em que o conhecemos, não sabíamos nada sobre a intenção dele. Nos dez dias seguintes, a gente ficou esperando a polícia bater na porta do quarto de hotel em que estávamos e prender o Snowden e a gente também. Ele tinha muito medo de ser morto e disse que tinha uma base da CIA perto do hotel. Quando chegou a hora de voltar ao Brasil, meu advogado disse que eu não poderia entrar nos EUA, então, fui para Dubai e, de lá, para o Rio, para evitar ser preso. Quando voltei, o governo norte-americano começou a me ameaçar publicamente e também de modo velado aos meus advogados, dizendo que se eu saísse do Brasil eles iriam me prender. Então, fiquei aqui um ano direto.
Outros países também estavam interessados no que você tinha, né? Os documentos que eu tinha eram muito sensíveis e todos os governos do mundo os queriam, assim como terroristas. E eu estava trabalhando dentro da minha casa com aqueles documentos. Então, tivemos que pensar muito em segurança. Eu tinha nove pen drives com este material, que estavam sempre fisicamente comigo, em uma mochila. Era a única cópia.
Num primeiro momento, o Brasil é seu aliado, por conta do que você revela a respeito da espionagem ao Brasil, das comunicações da Dilma, da Petrobrás e do Ministério de Minas e Energia. Me convidaram a testemunhar três vezes, me ofereceram segurança. Queriam saber como eles estavam fazendo exatamente, qual informação tinham coletado. E eu não sabia, os documentos não falavam. E também não estava trabalhando para o governo brasileiro. Disse: “Não posso passar nenhuma informação a vocês que eu não esteja replicando publicamente, porque isso vai me transformar em espião. Meu governo vai me processar como traidor”.
E esse era claramente o interesse dos senadores. Sim. E começaram a ameaçar mandar a polícia pegar os documentos. Trabalhei muito com os advogados d’O Globo, que falaram para o Senado que eles não tinham esse direito. Não estava mais sendo ameaçado pelo governos dos EUA, mas também pelo Senado brasileiro. E, naquela época, David foi detido pelo governo britânico no aeroporto de Heathrow, em Londres, sob acusação de terrorismo. Estavam nos ameaçando de muitas formas.
Como é seu contato hoje com Snowden? Em algumas ocasiões, chegamos a nos falar até duas vezes por semana; em outras, ficamos três, quatro semanas sem falar, porque ele está muito ocupado e eu também. Ele é diretor de uma fundação que protege a liberdade de imprensa, a Freedom of the Press Foundation, que criei com Laura Poitras e outras pessoas. Trabalhamos juntos nessa organização e ele também é meu amigo. Eu o visitei em Moscou pela última vez em julho passado e pudemos nos ver bem. Nas primeiras vezes que o visitei, ele tinha muita paranoia, não queria sair, eu só o encontrava no hotel. Mas, dessa vez, foi bem diferente, saímos, andamos na rua, visitamos lugares.
Você e David se colocam em debates constantes com conservadores e conta que recebem constantes ameaças de morte. Vocês têm segurança? Temos, sim, mas é impossível ter segurança completa. Depois do assassinato da Marielle, muitas pessoas do PSOL compraram ou alugaram carros blindados, porque, se o carro dela fosse blindado, não teriam conseguido atirar nela. Mas o que se pode fazer quando ela sai do carro para entrar em casa? Então, eu penso sobre esse risco, mas a única opção para eliminá— lo é morar como um prisioneiro, sair do país ou desistir do meu trabalho. Nenhuma opção é aceitável. Às vezes, uso um motorista com um carro blindado, à noite ou quando quero ir a um lugar perigoso, ou se sou convidado para um evento público, que esteja anunciado. Mas se quero jantar com amigos ou ir a algum lugar com as minhas crianças, saio normalmente.
Pensa em voltar para os EUA? Não, não. Temos dois filhos brasileiros, que adotamos no final de 2017, e o Brasil é o país deles, têm o direito de ficar aqui. David tem uma carreira com muito potencial, 33 anos e já é deputado federal. Eu fundei um veículo de mídia aqui, The Intercept Brasil. Na primeira vez que visitei o Brasil, já me apaixonei e isso não mudou. Já tive todas as crises, perigos, problemas e acredito mesmo no futuro do Brasil. Não tenho intenção nenhuma de voltar para os EUA.
Você acredita no futuro neste momento? Acredito, porque, para mim, o futuro é determinado pelas pessoas, pelo povo, e acho que a cultura, o espírito nacional, a vibração, a diversidade, a energia e a paixão dos brasileiros são únicas ainda. O momento é muito perigoso, mas perigos às vezes são necessários para criar alguma coisa boa. Nos EUA, todo mundo estava falando que, se Trump fosse eleito, iria destruir a democracia norte-americana. E ela está mais forte do que nunca, justamente porque todas as instituições reagiram. Aqui são só quatro meses [desde que o presidente Jair Bolsonaro assumiu o poder], mas acho que a grande mídia está investigando, revelando e criticando muito mais do que eu esperava.
Você falou da grande imprensa e do papel que está desempenhando. Mas, quando lemos os comentários, por exemplo, a sensação é de que a mídia passa por um profundo descrédito. Não há um perigo aí? Lembro bem de 2016, da eleição para prefeitura e, no segundo turno, estavam o Marcelo Crivella e o Marcelo Freixo. Os grandes veículos de mídia, inclusive a Veja, estavam investigando o passado do Crivella e revelando escândalos graves. Em vez de se defender, o Crivella começou uma guerra contra a mídia. Lembro dele na TV falando coisas como: “A mídia brasileira acha que você é burro, que pode te manipular com mentiras, fake news. Mas você é mais inteligente do que eles sabem, não pode mais ser manipulado pela mídia”. E ele ganhou com facilidade, os escândalos não tiveram impacto nenhum. Obviamente, isso é perigoso para a democracia, porque uma democracia precisa ter instituições em que as pessoas confiem. Mas a internet pode criar alternativas, o jornalismo independente pode fazer esse papel.
Da Revista Trip