Domine o déspota que vive em você

Análise

Os pressupostos básicos do regime democrático nem deveriam ter que ser escritos. A convivência pacífica e civilizada entre os que pensam de formas diferentes nem deveria ter nome. A nominação da coexistência entre contrários (democracia) pressupõe que princípios que deveriam ser tão lógicos e naturais quanto respirar, em uma sociedade, tiveram que ser enumerados porque as pessoas não são capazes de agir coerentemente por si sós.

A internet vai tornando clara uma faceta da natureza humana que os estudiosos da alma, em última instância, enumeraram, quantificaram, dimensionaram há séculos. Pensadores como Hannah Arendt, Zygmunt Baumann, Manoel Castells, cada um a seu modo e a seu tempo, contribuíram com a “Hipótese do Monstro” que habita cada um de nós e que, sob determinadas condições, pode se revelar.

Há um vídeo em que o professor da universidade norte-americana de Stanford Philip Zimbardo relata o “Experimento do Aprisionamento de Stanford”, no qual pesquisou reações humanas diante de condições de poder sobre semelhantes. O vídeo explica melhor condutas despóticas e até monstruosas que brotam em pessoas que, até então, poderiam ser consideradas “decentes”, “boas”, “civilizadas”.

Esse vídeo também explica ataque anônimo que minha filha doente sofreu recentemente em comentário postado neste blog. A menina tem doze anos, sofre de paralisia cerebral e está com a saúde gravemente abalada, sobrevivendo com home-care em casa. Isso, porém, não impediu que sofresse insultos e agressões de um comentarista que discorda do autor desta página.

Abaixo, o vídeo. O texto prossegue em seguida.

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Philip Zimbardo: Como pessoas comuns se tornam monstros… Ou heróis

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Note-se que o fator anonimato é o elemento desencadeador das reações despóticas e até monstruosas que podem nos atingir a todos nas condições “certas”, sobretudo quando nos são oferecidas desculpas para tomarmos atitudes que teríamos vergonha de tomar vestidos com nossas identidades sociais.

O sociólogo espanhol Manuel Castells, durante a década de 1980, passou a estudar o papel das novas tecnologias de informação e comunicação. Já na década de 1990 escreveu “A Era da Informação“, em uma trilogia publicada entre 1996 e 1998.

O primeiro volume da Trilogia chamou de “Sociedade em Rede – A Era da informação: Economia, sociedade e cultura”. Nesse estudo, idealizou o conceito de capitalismo informacional a partir da história do forte desenvolvimento das tecnologias e sua influência nas relações humanas. De certa forma, previu os efeitos que a internet, então impensada, exerceria sobre a natureza primal do homem.

Vários estudos recentes revelaram que, na internet, as pessoas vão se aglutinando em redes sociais, dividindo-se em grupos que se identificam e unem em torno de dogmas, crenças, preferências comuns, muitas vezes passando a atuar como facções em questões como competições esportivas ou em política e ideologia, rejeitando cada vez mais fortemente o pensamento contrário.

Na rede social Twitter, por exemplo, tem sido possível mensurar com precisão os movimentos de adesão ou afastamento que a difusão das idéias de alguém gera.

Através dos “seguidores” que cada membro da rede ganha ou perde, percebe-se que uns passam a “seguir” outros que manifestam idéias com as quais aquela pessoa concorda. Quando aquele que parecia pensar igual diz alguma coisa que contraria tal premissa, perde o “seguidor”. Da mesma forma, uma frase com a qual se concorda pode bastar para alguém começar a ser “seguido” por quem concorda com aquele ponto específico das idéias daquela pessoa.

A blogosfera também deixa bastante evidente essa aglutinação em tribos que vai separando as pessoas na era moderna, valendo-se, sobretudo, da identificação mútua com premissas macro-ideológicas. Um termo foi desenvolvido para aquele que entra em fóruns da internet para se contrapor à maioria que pensa de determinada forma. Troll é uma figura grotesca do folclore escandinavo que passou a designar aquele que diverge nesses fóruns.

Apesar de que há aqueles que entram em fóruns de discussão com o propósito malicioso de fazer as pessoas insultarem e perderem a elegância, aqueles que entram simplesmente para apresentar opinião oposta também acabam sendo incluídos no estereótipo. A esse fenômeno segue-se vontade da maioria de eliminar a discordância, assim como no Twitter deixa-se de seguir quem “muda de lado” ou descobre-se que, na verdade, não pensava igual em tudo.

A rejeição ao diferente vai transtornando as pessoas e o anonimato vai cuidando de transformar um pai de família, por exemplo, alguém pacato e cumpridor das leis, em alguém despido do mínimo de sensibilidade humana, capaz de atacar uma criança inocente e gravemente enferma só para se vingar daquele que expõe idéias “insuportáveis” para a vítima desse surto de intolerância.

Mesmo aqueles que não chegaram, até aquele momento, a adotar alguma atitude grotesca e até desumana diante do inconformismo com idéias antagônicas, esses já deixam ver a faceta que todo ser humano tem e que alguns conseguem conter mais e outros, menos. Ao fugirem dos que pensam diferente e se aglutinarem aos grupos supostamente concordantes, adotam uma conduta despótica de não suportar a divergência.

O drama dessa tendência que vai ganhando corpo na internet em progressão geométrica é que na vida é praticamente impossível que as pessoas concordem em tudo. A divergência é a regra entre os seres humanos. Pode ser nos gostos culinários, artísticos, culturais, de indumentária… Duas pessoas com a mesma ideologia política facilmente torcerão para times diferentes, por exemplo.

A ditadura militar que se abateu sobre o Brasil por duas décadas não foi nada mais, nada menos do que a condição de poder desbalanceado que havia em um dos lados. Assim como no estudo que o leitor assistiu no vídeo acima, pessoas decentes das Forças Armadas, sob a desculpa de uma “revolução” que combateria a “ameaça comunista”, converteram-se em autômatos monstruosos ao se despirem das próprias identidades vestindo uma farda.

Há um exemplo prosaico que exemplifica bem os estudos que fiz. Por certo todos já conheceram alguém que se transforma ao assumir a direção de um veículo automotor. A moça delicada, gentil e educada se transforma em alguém que xinga, esbraveja e comete até imprudências, muitas vezes avançando sobre pedestres, fechando outros veículos, buzinando descontroladamente etc.

O grande desafio civilizatório de uma nação, pois, é o de ela aprender a divergir de forma civilizada e produtiva, de maneira que dessa divergência brotem decisões, políticas públicas, leis, costumes aceitáveis para todos os lados ainda que ninguém possa se considerar plenamente satisfeito. A esse estágio de uma nação foi dado o nome de Democracia, na qual a grande maioria aprendeu a “suportar” o diferente.