A verdade vem do Norte
Há pelo menos dois grandes mitos com os quais as eternas potências estrangeiras do Norte contaminaram o imaginário do Ocidente: o terrorismo seria preponderantemente um fenômeno islâmico e a imprensa seria uma espécie de voz “divina” que só transmitiria a verdade e defenderia os interesses da coletividade, sendo, portanto, inatacável e inimputável. Fatos recentes, no entanto, colocaram tais dogmas em xeque.
A pretensão dos países ricos de defenderem para si o uso da força contra populações civis de outras nacionalidades como forma de pressão a nações com as quais aquelas potências econômicas, tecnológicas e militares do Norte mantêm contenciosos de todas as naturezas (econômicos, territoriais, culturais e até religiosos), foi um sucesso estrondoso.
Além de caracterizar seus atos desumanos contra mulheres, velhos e crianças como “guerra ao terror”, aquelas potências também conseguiram transformar a reação de grupos oriundos das populações atacadas dentro de seus territórios em “terrorismo”. Ou seja: conta-se como foi a reação, mas não que foi reação em vez de agressão imotivada.
Por razões culturais, de supremacia de classe e etnia ou por puro preconceito, a imprensa do Ocidente finge que, quando os Estados Unidos e União Européia interferem militarmente em outras nações distantes, vitimando legiões de civis nessas ações, o fim justificaria os meios. Mas quando, dessas populações agredidas, brota um grupo disposto a causar o mesmo tipo de tragédia nas sociedades que desencadearam as ações genocidas com as quais aquele grupo foi atingido, aí o que prevalece é o que interessa: o crime contra inocentes.
Em 22 de julho último, porém, essa visão hipócrita da realidade se veria fortemente ameaçada, pois um único homem conseguiu provocar uma chacina digna de figurar entre os maiores “atentados terroristas” da história.
Naquele dia, uma grande explosão foi provocada em Oslo, na Noruega, junto aos prédios onde se situa o gabinete do primeiro-ministro, Jens Stoltenberg, danificando edifícios contíguos e provocando oito mortos e numerosos feridos. Poucas horas depois, na ilha de Utoeya, ao norte da capital, um homem armado abriu fogo contra os participantes de um acampamento de jovens organizado pelo Partido Trabalhista Norueguês, que, atualmente, governa o país. Pelo menos 68 pessoas foram mortas.
Imediatamente após o ataque começam a surgir versões vinculando-o a “grupos islâmicos”, como a notícia divulgada pelo jornal norte-americano The New York Times de que um determinado “grupo jihadista” teria assumido a autoria do atentado. Era uma hipótese tão boa quanto qualquer outra, pois é comum que esse tipo de ação seja reivindicada por vários grupos e indivíduos que tentam ganhar projeção. Contudo, essa versão, em particular, ganhou todo aquele destaque.
A surpresa, porém, não tardaria. O cidadão norueguês Anders Behring Breivik é um fundamentalista cristão ligado à extrema-direita e à maçonaria, neoconservador e ardoroso defensor do Estado de Israel, segundo descreve a si mesmo em um manifesto de mais de mil páginas. Entrou no acampamento de jovens do Partido Trabalhista norueguês disfarçado de policial e, fortemente armado, abriu fogo contra os presentes. Entregou-se à polícia após a chacina e assumiu a autoria também do carro-bomba em Oslo.
Apesar de a máquina de propaganda conservadora-ocidental tentar vincular as ações de Breivik a uma sua suposta “loucura”, seus escritos ou os vídeos pregressos ao ataque deixam claro que haveria um envolvimento profundamente ideológico e sistemático nas ações do terrorista cristão e europeu. Um envolvimento que, agora, o mesmo New York Times atribui à ideologia conservadora-cristã de ultra-direita norte-americana da qual o Movimento Tea Party é a maior expressão.
O jornal norte-americano acaba de divulgar, em manchete de primeira página, reportagem com o sugestivo título “Massacre põe linha de pensamento antimuçulmana americana em foco”. Com base em um tomo de mil e quinhentas páginas divulgado pelo terrorista pouco antes dos ataques em Oslo e na Ilha de Utoeya, a matéria deu conta de que Breivik foi profundamente influenciado por blogueiros e escritores norte-americanos como Pamela Geller.
Geller é uma blogueira e escritora dos Estados Unidos que mantém fortes laços com o Movimento Tea Party e que, recentemente, lançou uma “cruzada contra a islamização da América”. Financiou a colocação de anúncios no transporte público de sua cidade contendo insultos aos muçulmanos, pregando “um fatwa” contra eles – fatwa é uma pena de morte que pode ser decretada por líderes islâmicos que todos os seguidores do islamismo, em tese, estariam obrigados a tentar cumprir. Em seu site, ela também exorta os muçulmanos a deixarem a “falsidade do Islã” e afirma que não se importa se ficarem ofendidos.
A norte-americana aparece sendo incensada nos escritos de Breivik junto a Paul Belien, Diana West, o Barão do blog Gates of Vienna e muitos outros radicais da ultradireita fundamentalista-cristã norte-americana. O que une os fundamentalistas norte-americanos e o terrorista norueguês, acima de tudo, é o repúdio ao “marxismo”, tão presente inclusive por aqui, em terras tupiniquins.
As diferenças de Geller e de seus pares para os líderes religiosos muçulmanos e seus “fatwas”, são duas: uns são cristãos e outros, muçulmanos. E, ao passo que o estímulo à violência muçulmana é feito abertamente, os fundamentalistas cristãos são menos explícitos, mas igualmente virulentos.
Chega-se, assim, à licença para tudo que deveria ter a imprensa, uma licença que é vendida às sociedades ocidentais – sobretudo em países do Terceiro Mundo, como os latino-americanos – pela mídia, e à tese de que qualquer tipo de regulação seria “censura”. Tais premissas acabam de sofrer um duro golpe, apesar das tentativas de distorção.
O escândalo da imprensa escrita que eclodiu na Inglaterra devido à revelação de métodos criminosos para obter informações usados pelo centenário jornal britânico The News of the World, até então controlado pelo magnata da mídia Rupert Murdoch, inseriu no debate público e no imaginário das sociedades menos desenvolvidas uma realidade sobre a qual até então pouco ou nada pensavam: regras para a imprensa e para as outras mídias são uma necessidade e já existem nas sociedades mais avançadas, como a britânica.
A distorção desse fato corre solta, aqui no Brasil. A grande imprensa foge de analisar com a devida profundidade o processo de revisão até daquilo que nem há no Brasil, a autorregulação da imprensa que vige na Inglaterra e que na maioria dos países industrializados não existe porque a regulação vem do Estado mesmo. Alguns blogueiros e colunistas ligados aos grandes conglomerados de mídia nacionais tentam vender a idéia de que haveria dispositivos legais no Brasil para regular excessos midiáticos.
Não existem tais mecanismos. Com a revogação da Lei de Imprensa, considerada inconstitucional pelo STF, fica extinto, por exemplo, o direito de resposta previsto e detalhado naquela Lei. Dessa maneira, um jornal pode escrever o que quiser sobre qualquer um, mesmo sendo mentira, e o processo judicial para conseguir espaço para dar uma outra versão dos fatos pode levar anos.
Quando a decisão judicial sai, muitas vezes passaram-se anos ou mais de década e os efeitos maléficos de uma reportagem inverídica ou de uma acusação grave em uma coluna de jornal já terão produzido toda a sorte de prejuízos. Em especial, os prejuízos eleitorais. Um meio de comunicação cujo dono é amigo deste ou daquele grupo político pode inviabilizar a eleição dos adversários sob acusação sem provas e a publicação da versão do acusado só sairá quando for tarde para reverter o resultado daquela eleição.
Essa situação não existe nos países ditos de “Primeiro Mundo”. Eles têm regras, organismos como pretendia ser o natimorto Conselho Federal de Jornalismo ou como a pretensa Agência Nacional de Comunicações, aprovada em 2009 na Conferência Nacional de Comunicação. A criação de instituições civilizatórias como essas, porém, é incessantemente torpedeada pela grande imprensa nacional como se fosse proposta de caráter “censor”, atentatória à “liberdade de imprensa”.
Como no caso da versão sobre o caráter “muçulmano” do “terrorismo”, a idéia de que na verdadeira democracia a imprensa não pode sofrer qualquer tipo de controle externo, sendo lícita apenas a sua autorregulação, perde força entre o público que se informa quando este toma contato com conceitos como o do império de comunicação de Rubert Murdoch e de que a imprensa, sem controle, pode até cometer crimes.
Vivemos em uma sociedade planetária muito diferente daquela que já houve em qualquer outro período da história. Nunca houve tal fartura de informação disponível a qualquer um que decida se informar. Nem em regimes em que vige a mais completa censura é possível bloquear completamente o tsunami comunicacional que varre a nossa era.
A despeito das iniciativas para controlar esse fluxo incontrolável de informações, as novas tecnologias só fazem aprofundar a inserção do homem nesse vagalhão de conhecimento que varre o planeta. E, agora, a verdade sobre dogmas cruciais para as elites planetárias vem da mesma fonte que os criou para consumo dos povos oprimidos do Terceiro Mundo, vem do Norte rico e desenvolvido.
Irônico, não?