Autofagia capitalista

Crônica

O último momento de lucidez que o mundo experimentou foi quando o capitalismo urrou de dor no final de 2008 durante o agravamento da crise das hipotecas norte-americanas, que arrastou outras potências para o fundo do poço. Naquele instante, começamos a nos perguntar se aquele sistema econômico apregoado e vendido pelo mundo rico, teria nexo.

Tragicamente, foi um lampejo de lucidez. Passado o choque da descoberta de que os professores de Deus não aplicavam para si as receitas que prescreviam aos países pobres, a ladainha de que para curar o paciente seria preciso injetar-lhe doses ainda maiores do veneno que causou a doença esmagou as reflexões que começavam a ser ensaiadas.

Pode parecer ironia que os sacerdotes do deus mercado estejam se tornando suas principais vítimas, mas não é. Refletindo bem, é possível concluir que o que está acontecendo nas economias do hemisfério norte – e que ameaça contaminar o resto do planeta – era mais do que previsível.

O capitalismo é um sistema autofágico. Por mais que seja vendido como o único sistema econômico testado, aprovado e inescapável, no relógio da história não vigeu nem por um segundo e, portanto, o mundo pode estar começando só agora a sentir seus efeitos colaterais mais graves.

A produção de riqueza, no capitalismo, é sempre insuficiente para satisfazer a todos de forma minimamente aceitável. Para primeiro satisfazer a fração mínima da humanidade que concentra parte desproporcionalmente alta da renda é preciso produzir legiões de mortos-vivos que podem ser mantidos conformados por muito tempo, mas não para sempre.

Quem conhece minimamente história sabe que povo nenhum permaneceu conformado para sempre com os diversos tipos de escravidão impostos à espécie humana no transcurso de sua conturbada epopéia. E como a lógica capitalista se mostra incapaz de reverter o sofrimento em um ritmo racional, quando não o aumenta, deu no que deu.

O capitalismo não pensa. E como quem pensa o capitalismo é um contingente de seres humanos que, estatisticamente, mal pode ser expresso por um único ponto percentual, essa doutrina irracional come seus próprios pés e já vai avançando em direção às pernas em um processo que terminará por consumir até a cabeça.

Não há saída além da de reduzir drasticamente o nível de sofrimento a que a varinha de condão do capitalismo fez chegarem legiões imensuráveis de seres humanos. A necessidade de fornir primeiro aquele percentual microscópico da humanidade com recursos que transformariam as vidas de centenas de milhões torna insuficiente qualquer nível de produção de riqueza.

A lógica capitalista é de acumulação progressiva de riquezas. Se possível, ao infinito. Uma coisa que nunca se verá: um capitalista satisfeito com o volume de capital que amealhou. Essa voracidade emperra qualquer progresso significativo das massas humanas que perdem em tal processo, levando a situação ao limite que está se vendo no resto do mundo.

Aqui no Brasil, não é diferente. O fato de termos experimentado um progresso social e uma distribuição de renda menos pífios nos últimos anos não significa que as demandas não tenderão a aumentar ao ponto em que o sistema capitalista que praticamos se torne insuportável mesmo com o anteparo das redes de proteção social.

O pior é o fim dessa história. Como é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um capitalista aceitar um limite para a própria ambição, os efeitos explosivos da continuidade dessa insanidade chegarão ao ponto da insurreição completa das massas desvalidas. Aí será tarde demais para pensar em uma solução pacífica.